Em tempo de assinalar os 90 anos do compositor Arvo Pärt, o maestro Paavo Järvi, que o conhece desde criança, dedica-lhe um novo disco.
Parece uma saga familiar. E de certa maneira podemos ver assim esta narrativa… E esta é uma história, com geografia na Estónia, de um chefe de orquestra de renome mundial, que nos dias de juventude conheceu um compositor desafiante junto de quem nasceram relações de amizade e trabalho que, com o passar do tempo, se estenderam aos filhos do maestro, que, um após outro, acabaram também por se render ao espírito e à obra do velho mestre. O maestro não é senão Neeme Järvi (n. 1937), contemporâneo de Arvo Pärt, que conheceu bem cedo e de quem se tornou não apenas amigo, mas importante parceiro de trabalho e divulgador. Afinal foi Neeme Järvi quem estreou, em 1968, o mítico Credo. Neeme tem três filhos. Maarika Järvi, flauitsta, já tocou música de Pärt no próprio Arvo Pärt Centre, na Estónia. Neeme é também pai de dois maestros. O mais novo, Kristjan Järvi, já gravou Pärt. E o mais velho, Paavo Järvi, na verdade apresenta já na sua discografia vários momentos de encontro com Pärt, o mais recente dos quais durante a 15ª edição do Pärnu Music Festival, com a Estonian Festival Orchestra, na qual apresentou um programa muito pessoal que agora surge na forma de disco em Credo, editado pela Alpha Classics. O disco foi apresentado a 11 de setembro, data que assinalou o 90º aniversário do compositor. E nesse mesmo dia foi-nos dada a oportunidade de conversar com o próprio maestro Paavo Järvi. Aqui fica a transcrição dessa breve conversa:
É filho de Neeme Järvi, reconhecido amigo de longa data do compositor. Quais são as suas memórias mais antigas de Arvo Pärt?
Nós tínhamos muitas pessoas famosas a passar lá por casa. E Arvo Pärt era uma delas. Mas também havia figuras conhecidas da União Soviética como Chostakovitch ou Katchaturian… Por isso para nós era normal vermos pessoas como estas a vir visitar o meu pai e a jantar connosco. O Arvo Pärt era uma visita frequente… Vinha conversar com o meu pai e tinha um aspeto muito jovial, sempre de jeans, com um boné de baseball e uma barba longa, meio à hippie. Tinha um ar misterioso e interessante… E que parecia ser algo ocidental para nós. Porque éramos um país do outro lado da Cortina de Ferro.
O seu pai estreou Credo em 1968. E o seus irmãos também gravaram obras de Pärt. É uma tradição familiar?
É sem dúvida uma tradição familiar. Arvo Pärt é para nós mais do que apenas um compositor. Ele, de certa maneira, simboliza a cultura da Estónia. Foi capaz de sair de um pequeno país (temos pouco mais de um milhão e meio de pessoas) e alcançar um nível de reconhecimento e respeito por todo o mundo. E isso é algo que é incrivelmente importante para a autoconsciência de uma nação pequena. Houve muita gente que enveredou profissionalmente pela música, como intérprete ou compositor, por causa dele. Porque ele mostrou o caminho. Há por isso esse importante lado musical, mas também o facto de ser um modelo inspirador por ser tão admirado pelo mundo fora.
Acha que a música de Arvo Pärt só poderia ter nascido por alguém vindo da Estónia e percorrido a sua história de vida? Ele nasceu num país independente, viveu um tempo de invasão pela Alemanha nazi, depois a anexação pela URSS, mudou-se para o estrangeiro e só depois de 1992 voltou a viver num país independente… Ou seja, a sua música reflete assim ecos desta história e de uma identidade cultural?
Creio que, até um certo ponto, sim. As pessoas são formadas pelo ambiente que as envolve. Tornam-se no que são, moldadas pelos acontecimentos dos lugares onde vivem… Parte da vida consciente de Arvo Pärt corresponde aos dias da URSS. É certo que houve antes uma breve etapa inicial de vida num país independente e depois o período alemão, que na verdade nem o foi exatamente assim porque se vivia afinal um tempo de guerra… Ou seja, as expressões de protesto que se escutam na obra de Arvo Pärt nos seus primeiros anos de trabalho, a fase mais de vanguarda da sua música, têm a ver com o sistema soviético. A primeira obra que ele compôs para orquestra, Nekrolog tem muito que se lhe diga. E de facto há significados no facto de um jovem compositor compor uma peça com um título como este… E depois, todos os trabalhos com técnicas de colagem que ele empregou em obras como Credo… Ali ele justapunha algo belo, como a música de Bach, a um ruído dodecafónico. Um ruído que chocava perante um contexto onde estava também Bach. E ali está também uma mensagem. Sobre o que está certo, sobre o que é puro e o que era a realidade ao seu redor, que era basicamente corrupta e falsa. Tudo isso não era novo. Chostakovitch, na sua própria linguagem, estava a escrever sobre as mesmas coisas. Tal como Schnittke… Ou seja, havia muita gente a tentar expressar o que não era autorizado, o que não se podia verbalizar no período soviético. Tentavam assim expressar essas mesmas ideias através da música. E de uma forma muito básica, a música de Arvo Pärt era muito direta, uma reação àquela realidade absurda do sistema soviético. E a dada altura ele cansou-se. Sentiu que havia demasiado ruído no mundo. Tanta agitação desnecessária. Então retirou-se e não escreveu nada ali entre uns sete a uns dez anos… E então começou a escrever num estilo novo que entretanto tinha começado a desenvolver. O tintinabuli, que tinha mais a ver com sons simples e puros, silêncios… No fundo, tudo aquilo pelo qual ele é hoje reconhecido.
Escolheu esse histórico Credo para dar título a este seu novo disco com música de Arvo Pärt. A tal peça que o seu pai estreou em 1968… O seu pai alguma vez falou consigo sobre a ousadia que habitava este Credo?
Absolutamente! Tivemos longas conversas… E outras tantas até bem recentes por causa deste disco e dos 90 anos de Arvo Pärt. Contou-me muitas histórias. Na altura eu era novo demais para ter estado naquele concerto. Tinha então seis anos. Mas a realidade que as pessoas conheciam naquele tempo é algo a que hoje em dia já não estamos habituados. Tudo tinha de ser aprovado por um comité do partido comunista. Todas as obras tinham de passar por um processo de autorização. Ocasionalmente, e esse foi o caso desta obra em particular, Credo não passou pelo comité. Ou não tiveram tempo ou houve outra razão qualquer… E o meu pai estreou-a. Então, só depois da estreia, o comité reuniu e censurou a obra. Acharam que não era adequada para o público soviético. Havia a temática religiosa, e aquela música “feia”… Mesmo assim meu pai voltou a apresentá-la. É incrível que ele tenha assumido a responsabilidade de o fazer uma segunda vez… E esse foi o momento em que tanto o meu pai, tal como Arvo Pärt, foram colocados numa lista de dissidentes potenciais e possíveis desordeiros. Muitas encomendas a Arvo Pärt foram então canceladas. E a liberdade que ele antes tinha para compor foi-lhe retirada. E essa foi uma das razões pelas quais ele deixou de compor e só ressurgiu com o tintinabuli uns dez anos depois… Até que acabou por sair do país.
Arvo Pärt mudou-se para Viena. Depois para Berlim. O facto de ser ter cruzado com Manfred Eicher (da editora ECM) terá sido determinante para o salto rumo a um patamar de visibilidade internacional que chegou nos anos 80?
Sim. Creio que houve figuras motrizes que criaram os vários momentum para Arvo Pärt. Como tantos outros compositores, ele precisou de alguém que acreditasse na sua música logo desde o início. Esse momento é sempre crucial. E aí quem entrou em cena foi o meu pai. Muitas das estreias das suas primeiras obras foram feitas pelo meu pai. Eram amigos, o meu pai era diretor musical da ópera, que tinha uma orquestra sinfónica e uma de câmara. Foi assim que as primeiras obras de Arvo Pärt foram estreadas e interpretadas. Depois, claro, houve figuras como Gidon Kremer, até mesmo Rostropovitch, para quem de resto ele compôs um Concerto para Violoncelo. Começaram a tocar a sua música… E quando Arvo Pärt chegou ao Ocidente, por essa altura a reputação destes artistas que tocavam a sua música ajudou-o a conquistar outra visibilidade. A visibilidade suficiente para que Manfred Eicher o pudesse descobrir. Por isso foi um processo longo. E começou ainda na Estónia, onde gradualmente começou a cruzar a fronteira para outras partes da URSS e depois a chegar ao Ocidente. E esse processo fez-se através de interpretações da sua música feitas por artistas soviéticos.
De resto, o próprio Manfred Eicher descobriu a música de Arvo Pärt ao escutar, no carro, uma interpretação de Tabula Rasa gravada pela rádio, na Estónia, por uma orquestra em Talin…
É verdade! E eu estava lá, na estreia dessa obra! Na Estónia, com Gidon Kremer, Tatjana Grindenko e Alfred Schnittke no piano! Eu estava lá, com o meu pai.
Para criar este disco que agora dedica a Arvo Pärt teve de fazer um olhar panorâmico para juntar repertório dele… O que procurava criar com este conjunto de obras de Pärt?
Tinha esta ideia planeada há já algum tempo. Queria dar-lhe um presente de aniversário… Era um presente e também um agradecimento pela sua contribuição incrível para a historia da música na Estónia. E também um agradecimento ao próprio ser humano, porque ele é de facto uma pessoa maravilhosa. O critério para a seleção das obras não foi o de procurar uma mera coerência musical, mas antes reunir peças de que gosto particularmente e juntar Credo, que tem todos aqueles significados, já que envolve o meu pai que fez a sua estreia… Há, assim sendo, significados que não têm a ver com uma cronologia musical, mas com escolhas pessoais. Há peças maravilhosas que eu queria muito poder gravar. E Credo, que de certa forma é ainda estranhamente poderoso. É claramente uma música de uma época, traduz um tempo na história, mas de certa forma ainda funcional. Quando a tocámos houve pessoas a chorar na plateia. As pessoas nem saberiam sequer porque choravam. Mas tinham lágrimas nos olhos. É uma obra que diz muitas coisas a pessoas muito diferentes. No fundo, o disco é como uma carta de agradecimento.
Num século XXI em que estamos tão focados na vertigem do presente, no frenesim do quotidiano, podemos dizer que, como no caso da música de Arvo Pärt, por vezes podemos olhar tranquilamente para trás para poder sonhar mais adiante?…
Creio que essa frase é bela. E é verdade. Vivemos obcecados em descobrir algo novo. E por vezes negligenciamos a beleza que já foi criada… A história está cheia de verdades. E se a conhecermos melhor podemos olhar doce outra forma para o futuro.
Nuno Galopim
