Libreto
Modest Tchaikovski, baseado no conto homonimo de Alexsandar Pushkin
Estreia
Teatro Marinsky em 1890
Antecedentes
Tchaikovsky e o Teatro
Desde tenra idade que Tchaikovski se sentia atraído para o teatro. A sua atracção pelo bailado, em particular, não foi surpresa. A dança era não só uma parte vital da tradição cultural da Rússia, mas também um ingrediente essencial do sangue que corria nas veias de Tchaikovski. Teve um papel preponderante no seu primeiro repertório; com nove anos deleitava-se a acompanhar familiares e amigos ao piano enquanto eles dançavam.
Também importante para a sua formação, foi o seu contacto com a ópera, tanto no teatro como em casa. Em defesa da sua obra teatral perante um céptico, Tchaikovski declarou que "abster-se de escrever óperas é um acto heróico, e só há um herói desses no nosso tempo – Johannes Brahms. Esse tipo de heroísmo não é para mim. O palco, com todo o seu esplendor, atrai-me irresistivelmente."
Mas não era só uma questão de esplendor e atracção. A ópera tinha vantagens práticas que Tchaikovski tinha bem presentes quando escreveu:
"Muitas vezes o palco paralisa a inspiração musical de um compositor, daí resultando que a música sinfónica e de câmara está geralmente a um nível muito superior ao da música operática. Uma sinfonia ou uma sonata não me impõem quaisquer limitações; em contrapartida, a ópera tem uma vantagem diferente: dá-nos a possibilidade de falar na linguagem musical do povo, e também com mais frequência. Uma ópera pode ser apresentada quarenta vezes numa temporada, uma sinfonia talvez uma vez em cada década."
A primeira ópera de Tchaikovski, no seu estilo declaradamente nacionalista, deu o tom para as três seguintes. A partir daí, mesmo quando tratava de temas russos, iria adoptar uma abordagem mais cosmopolita. Concluída em 1868, O Voivoda era uma ópera de raiz popular ao estilo de Russlan e Ludmila de Glinka, composta com a ajuda de um amigo, Aleksandr Ostrovski. As suas tentativas seguintes, Undine e Mandrágora, fracassaram antes de serem concluídas. Assim, a primeira ópera integralmente de Tchaikovski é Oprichnik, composta em 1871. Mas não é só por essa razão que ela é importante. Dá-nos também uma prova inspiradora da grande tenacidade de Tchaikovski quando se tratava daquilo que ele considerava realmente bom. Interessante também, é a forma como aborda o "realismo" teatral no tratamento de um tema histórico (os Oprichnik eram os guarda-costas de Ivan o Terrível). Oprichnik pode ser russa no tema e também em grande parte da música, mas no tratamento está mais próxima das grandes óperas de Meyerbeer, associada à Ópera de Paris dos anos 1830 e 40. Há nela um elemento de sensacionalismo ostensivo que o compositor acabaria por abandonar. Ironicamente, Oprichnik foi o seu primeiro sucesso operático em termos de bilheteira, residindo a ironia no facto de que ele, pessoalmente, estava consideravelmente insatisfeito com a sua obra. Se não tivesse já vendido os direitos, teria impedido que ela voltasse a ser apresentada.
A ópera seguinte, Vakula o Ferreiro, de 1874, marcava o regresso à ópera folclórica, num registo que finalmente satisfazia Tchaikovski, mas que passaria indiferente ao publico. Mesmo a sua revisão, seis meses depois, como Cherevichki ("As Pantufinhas") não contribuiu para lhe alterar grandemente o destino.
Esquecimento foi coisa que a ópera seguinte de Tchaikovski nunca conheceu. Eugene Onegin, apesar de ser fruto do período mais angustiado da sua vida, tem lugar permanente entre as óperas preferidas em todo o mundo. Baseada no romance em verso com o mesmo nome escrito por Aleksander Pushkin, é correctamente descrita (na página de título) não como uma ópera, mas sim como "Cenas líricas ou elegíacas em três actos". Dá-nos a verdadeira essência de Tchaikovski ao seu melhor nível, e foi escrita com uma facilidade e uma rapidez que as circunstancias em que foi escrita tornam ainda mais surpreendentes. História de amor não correspondido, de manipulação cínica, tragédia e rejeição, reproduz em muitos aspectos os acontecimentos, os mal-entendidos e os sentimentos contraditórios da vida real de Tchaikovski na época. Mas é condimentada com doses contagiantes (se bem que irónicas) de alegria, poesia bucólica, boa vida (e má vida) da cidade e do campo, e, acima de tudo, um nível sustentado de beleza lírica e agudeza psicológica únicas na sua música até então. Ao contrário do que é habitual em Tchaikovski, a emoção é expressa sem qualquer exagero, e o drama decorre mais da personagem do que da acção.
Escrever Onegin foi claramente um acto de catarse para Tchaikovski, e foi porventura com a esperança de conseguir a repetição do efeito que se voltou quase de imediato, em jeito de sequência, para o tema de Joana d’Arc. Há certamente uma dose de pretensiosismo na sua declaração: "A ideia da Donzela de Orleães apossou-se furiosamente de mim. Quero concluir a obra toda em uma hora, como às vezes acontece num sonho." Levou um pouco mais de tempo, mas talvez não o tempo suficiente. O resultado foi uma obra irregular de dimensão épica.
Com as duas óperas que se seguiram, Mazzepa (1881-3) e A Feiticeira (1885-7), prosseguiu o seu vertiginoso declínio operático. Tchaikovski nunca foi essencialmente um dramaturgo com talento para o grande enredo épico (como foi Tolstoi). Não era um realista poderoso como Mussorgsky. Não tinha o génio de Verdi para a caracterização que não dependesse da identificação subjectiva; e o mundo do drama musical wagneriano, embora seguramente o tenha influenciado, estava longe do seu ambiente natural. Só dava o melhor da sua capacidade quando conseguia habitar as suas personagens, como conseguiu e fez com as duas personagens principais de Onegin.
Sem desprimor para as virtudes intermitentes das suas outras obras de palco compostas neste período, Onegin não teve paralelo em termos de qualidade global e visão. Em nenhuma outra ópera o autor tinha emergido como verdadeiro protagonista da cena mundial, e muito menos isso iria acontecer com as três que compôs depois dela. Mas já A Dama de Espadas (1890) está ao seu melhor nível. Uma fascinante história de amor e jogo, também ela adaptada de Pushkin, é esta obra, e não Onegin, que, segundo muitas opiniões, assinala o ponto mais alto da mestria de Tchaikovski como compositor de ópera. Tal como acontece em Onegin, o drama é baseado nas personagens e não na acção, e a partitura inclui alguma da sua melhor musica, e também da mais estimulante. Como compositor, e também como homem, Tchaikovski tinha um coração essencialmente lírico, mais do que heróico. No entanto, isto não significa que lhe faltasse a paixão ou o drama. Longe disso: era generosamente dotado de ambas as coisas. Em A Dama de Espadas, porventura mais do que em qualquer das suas outras óperas, foi totalmente fiel ao seu coração no mais amplo sentido possível.
Souvenirs de Florence
Em 1889, Tchaikovski compõe A Bela Adormecida. Como era habitual, após a estreia de uma obra de vulto, Tchaikovski partiu da Rússia quase imediatamente após a estreia do bailado. Tomou a direcção da Itália, e mal chegou a Florença começou a trabalhar numa nova obra para palco, uma ópera baseada numa novela de Pushkin – A Dama de Espadas. Inicialmente, Tchaikovski mostrou pouco interesse na ideia do seu irmão Modest em adaptar a novela para os palcos, mas, uma vez chegado a Florença, não hesitou em atirar-se ao trabalho. A Dama de Espadas teve uma gestação tão rápida quanto o de A Bela Adormecida tinha sido lenta. Em seis semanas estava completamente esboçada, e em mais seis semanas estava concluída. Era típico do envolvimento emocional de Tchaikovski com as suas personagens ficar frequentemente lavado em lágrimas enquanto compunha a trágica cena final. Igualmente característica foi a decisão de fazer seguir a ópera de uma obra que está exactamente no pólo oposto em quase todos os aspectos: o elegante, nada exigente, encantadoramente sofisticado Souvenirs de Florence.
Mas o seu mais substancial souvenir de Florença foi A Dama de Espadas que, caso excepcional entre as suas óperas, foi um êxito desde a primeira audição.
Em defesa do canto, da interpretação e da Dama de Espadas
Os nossos críticos musicais, perdendo muitas vezes de vista o facto de que o essencial na música vocal é a reprodução fiel da emoção e do estado de espírito, olham primeiro para as acentuações deficientes e para toda a espécie de pequenas falhas declamatórias em geral. Reúnem-se maliciosamente e censuram o compositor com uma persistência que merecia melhor causa. Nisto se tem distinguido especialmente Cui, e continua a fazê-lo em todas as oportunidades que tem… O rigor absoluto da declamação musical é uma qualidade negativa, e não se deve exagerar a sua importância. Que importa a repetição de palavras, ou mesmo frases inteiras? Há casos em que tais repetições são perfeitamente naturais e estão em harmonia com a realidade. Sob a influência de uma emoção forte uma pessoa repete várias vezes uma e a mesma exclamação e frase. Não vejo nada em dissonância com a realidade quando uma governanta velha e estúpida (em A Dama de Espadas) repete o seu eterno refrão sobre a decência em todas as oportunidades que encontra durante a sua longa lição de moral. Mas mesmo que isso nunca tivesse acontecido na vida real, eu não sentiria o mínimo rebuço em virar ostensivamente as costas à verdade "real" em favor da verdade "artística". As duas são completamente diferentes… Que alguém as confunda quando estabelece o contraste entre o discurso e a canção é simplesmente desonesto.
Resumo
I Acto
A acção de A Dama de Espadas passa-se em São Petersburgo, no final do século XVIII. Herman, um jovem oficial estranho, intenso e sem dinheiro, que constitui um verdadeiro mistério para os seus amigos, ama Lisa, que está à guarda de uma velha Condessa. Lisa, contudo, está noiva do delicado príncipe Yeletsky. Os amigos de Herman contam-lhe a história da Condessa: foi uma mulher de grande beleza na corte de Versalhes, tendo perdido todo o seu dinheiro na mesa de jogo. Em troca de um favor sexual foi-lhe contado o segredo de três cartas que, infalivelmente, a iriam fazer ganhar qualquer jogo. Na sequência disto, um fantasma avisou-a que iria morrer às mãos de um homem louco de amor, desesperado por saber o seu segredo. Herman fica obcecado com a história, e vê a fórmula das três cartas como a chave para a sua fortuna e para o amor de Lisa. Irrompe pelos aposentos dela e declara-lhe o seu amor. Lisa fica fascinada com o seu ardor.
II Acto
Num baile, os amigos de Herman brincam com ele devido à sua crescente obsessão. Lisa dá a Herman a chave para os aposentos da Condessa, através do qual poderá entrar nos dela. Nessa mesma noite, a Condessa muda de roupa no seu quarto, recordando os seus dias de glória em Versalhes. Herman aparece e implora-lhe que revele o segredo das cartas. Apavorada com o intruso, a Condessa morre, concretizando-se dessa forma a profecia do fantasma, Lisa entra e fica chocada ao descobrir que o segredo das cartas é mais importante para Herman do que o seu amor por ela.
III Acto
De volta ao seu quarto no quartel, Herman recebe uma carta suplicante de Lisa e uma visita do fantasma da Condessa. Ela diz-lhe para casar com Lisa e revela a fórmula das três cartas – três, sete e ás. Ao encontrar-se com Lisa, que se mostra bastante abalada, Herman aparece enlouquecido, pensando apenas em experimentar