16 Dezembro 20h30
Helena Correia, Tiago Ribeiro – altos
Gabriel Neves, Carlos Meireles – tenor
Sérgio Ramos – barítono
Carmina Repas Gonçalves, Xurxo Varela – violas da gamba
Joana Almeida – baixão
Laura Puerto – harpa de duas ordens
Hugo Sanches – violas de cinco e seis ordens & direcção
Programa
Música Barroca Portuguesa para o Natal
Chacona sobre Zuguambe / A minino tam bonitio | Vilancico/cançoneta de negro
Olá Barqueiros | Vilancico/cançoneta de Natal
Y le le le, y samba | Vilancico/cançoneta de negro
Dexad al niño que llore | Tono ao divino
Olas, olas | Vilancico/cançoneta sobre a Mangalaça
Plimo, plimo que gritá? | Vilancico/cançoneta de negro
Salia Flora a coger flores | Romance
Desbiar, desbiar | Vilancico/ensalada de galego
Meu menino pois sois bonitinho / Ai dina, dina, dana | Vilancico/cançoneta de Natal
Transmissão direta
Realização e Apresentação: João Almeida
Produção: Susana Valente
pensamento e cultura ocidentais. Conflitos como a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648) ou a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha (1640-1668)
reconfiguraram o equilíbrio de forças e redesenharam o mapa político europeu.
No plano intelectual, o edifício epistemológico das sete artes liberais, que
predominara durante mais de um milénio, começa a desmoronar-se, transformando
não só o modo como o homem via o mundo e o universo mas também como neles se
posicionava e com eles interagia.A música
não constitui exceção nesta mudança de paradigmas, distanciando-se do lugar
tradicionalmente ocupado pela musica speculativa entre as artes matemáticas
do Quadrivium e aproximando-se agora
do Trivium, sobretudo da arte do
orador, a retórica. Através de uma nova e íntima relação com a palavra, a
música adquire, a partir do alvor do século XVII, a condição de veículo
privilegiado do pathos. A
arquitectura sonora, ao mesmo tempo que se constrói em torno do texto,
potencia-o e enriquece-o. De natureza fundamentalmente funcional, a música
transforma-se numa poderosa ferramenta de persuasão afectiva (e também
doutrinária e política) utilizada e adaptada a uma grande variedade de
contextos sob uma igualmente grande variedade de configurações. Sustentada
agora em princípios poético-retóricos mais do que matemáticos, a música assume
como principais objectivos seduzir e comover as audiências às quais se
destinava: nas célebres palavras de Cícero, docere, delectare, movere.
desta dinâmica de transformação, a Península Ibérica apresenta um riquíssimo
quadro cultural que, alicerçado sobre esta matriz de pensamento comum a toda a
Europa, possui, no entanto, caraterísticas que lhe são distintivas. O universo
ibérico apresenta uma unidade cultural que antecede a união das coroas
portuguesa e castelhana em 1581 e persiste para além da Restauração da
Independência portuguesa em 1640. Durante cerca de século e meio, circularam
livre e intensamente pessoas, textos e música no espaço peninsular. Mediado
pelo castelhano enquanto língua franca (mas não exclusiva), as correntes de
influência poética são, no entanto, bidireccionais. Gil Vicente e Camões, por
exemplo, são figuras de fulcral importância para a música, poesia e teatro
castelhanos. Inversamente, a revolução poética iniciada por Luis de Góngora na
década de 1580 e a Comedia Nueva
cultivada e preconizada por Lope de Vega no virar do século, marcaram profunda
e incontornavelmente a cultura portuguesa durante o Siglo de Oro. É neste rico e fervilhante contexto que foi escrita e
originalmente interpretada a música e poesia que se escutará neste concerto.
que se apresenta consiste inteiramente em obras de uma das maiores e mais importantes
coleções de música ibérica do século XVII, hoje custodiada pela Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra. A colecção compreende um conjunto de 16
manuscritos contendo centenas de peças dos mais variados géneros líricos,
litúrgicos, musicais e teatrais, compostas ou copiadas no mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, maioritariamente durante as décadas de 1640 e 1650. A música
albergada pelos cadernos coimbrões espelha eloquentemente como no século XVII
confluíam no espaço litúrgico múltiplas manifestações artísticas. O Natal era,
neste domínio, uma festa privilegiada. Na celebração do nascimento de Jesus,
acompanhavam a liturgia uma rica diversidade de eventos paralelos, com
particular destaque para a música e o teatro. Com a finalidade de louvar o
Menino Jesus, desfilam pela música temas e personagens que representam o
pensamento e a sociedade deste tempo de extraordinária pluralidade e
transformação, no qual o velho e o novo, a devoção e a comédia, filosofia,
política, religião e entretenimento se mesclam ecléctica e desinibidamente.
assim africanos, castelhanos, galegos, portugueses, personagens bíblicas,
marinheiros e pastores, cada um com as suas caraterísticas, maneirismos e
idiossincrasias, conduzindo o ouvinte numa viagem que atravessa diferentes
paisagens poéticas e sonoras, ora divertidas, ora comoventes, ora cómicas, ora
reverênciais. Lançando diferentes olhares poéticos sobre o Jesus Infante,
múltiplos planos de escuta, reflexão e devoção se proporcionam:
Divindade que desce ao mundo;
o seu delicado menino;
esperança na redenção.
Terra se canta e se baila!
Edição, transcrição e arranjo de todas as obras por Hugo Sanches a partir dos Manuscritos Musicais 227, 229, 232, 236 e 239 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra excepto: A Minino tam bonitio, transcrito por Octavio Paez-Granados; Plimo, plimo que gritá? e Y le le le, y samba transcritos por Manuela Lopes.
Todas as obras, com a
excepção de A Minino tam bonitio,
foram apresentadas em estreia moderna pelo Bando
de Surunyo e são aqui interpretadas em Lisboa e na rádio pela primeira vez.
O Bando de Surunyo é um grupo especializado na interpretação de
música dos séculos XVI e XVII. O nome é retirado de um vilancico de negro seiscentista português e significa “bando de
estorninhos”. O ensemble é a frente interpretativa e laboratorial de um
projeto multidisciplinar que incide particularmente sobre repertório inédito albergado
por fontes portuguesas. Desde a sua criação, O Bando de Surunyo apresentou mais de 30 obras inéditas em primeira
audição moderna. O projecto abrange música tanto de aquém como de além
fronteiras, tendo como objetivo proporcionar ao público, através da música e
da poesia, o contato com a pluralidade, ecletismo e riqueza do pensamento e
imaginário do renascimento e
barroco europeus.
A íntima relação entre
som e palavra que emerge na música na transição do Quinhentos para o Seiscentos
é o eixo central da abordagem do Bando de
Surunyo ao estudo e interpretação do repertório. O som colocava-se então ao
serviço do texto, veiculando, ilustrando e potenciado o seu conteúdo poético e
afectivo. A transmissão eficaz e eloquente desse conteúdo nas suas múltiplas
leituras e funções – literal, teatral, histórica, simbólica, religiosa,
política e filosófica – constitui a base para a construção de uma conceção
interpretativa que persegue hoje o mesmo objectivo da música de então: divertir
e comover o público através da palavra, do gesto e do som. Todo o projecto
assume pois um alcance estético e comunicativo alargado onde, fazendo uso de
práticas interpretativas e instrumentos históricos, se procura criar um objeto
artístico pertinente, significativo e impactante para o público de hoje.
Textos e traduções por Hugo Sanches
(2018)
Grafismo © Miguel-Anxo Varela (2016)
Fotos Jorge Carmona / Antena 2 RTP