A entrada já não se faz pela porta central, a do acesso ao átrio onde está gravada, na laje do patamar, a sua própria carta astrológica. Estamos na Casa Fernando Pessoa, lugar de conservação, preservação e divulgação do legado do escritor, cujo espólio documental foi classificado Tesouro Nacional. Esta que foi a sua casa nos últimos 15 anos de vida, entre Março de 1920 – data também da sua primeira carta a Ofélia -, e Novembro de 1935.
Lugar de literatura, outrora e agora.
Em Campo de Ourique, no nº 16-18 da Rua Coelho da Rocha, artéria assim nomeada desde 1882, quatro anos após a aprovação do projeto para um novo bairro, em Lisboa. No final dos anos 80, a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu o prédio, em mau estado de conservação e em risco de demolição. Todo o edifício foi reconstruído, segundo o projecto da arquitecta Daniela Ermano, mantendo-se apenas como originais a fachada, as escadas que levam ao primeiro andar e duas divisões do apartamento da família, o 1º andar direito.
Em dia de aniversário da morte do poeta, a 30 de Novembro de 1993, a Casa foi inaugurada e desde então está aberta ao público. No final de agosto deste ano, e apesar dos condicionalismos da pandemia que vivemos, reabriu, após um ano e meio de remodelações, para a tornar acessível a todos os públicos e com um novo projeto museográfico.
No rés-do-chão, faz-se o acolhimento dos visitantes. Uma recepção totalmente ladeada por estantes com muitos livros, edições em diversas línguas, e objectos de merchandising concebidos por vários designers, peças originais e atractivas dispostas ao longo da aumentada e renovada loja / livraria da Casa.
Subimos para a exposição que ocupa os três pisos superiores; agora com a opção de se usar um elevador. Exposição de longa duração, de percurso descendente do 3º piso para o 1º, sobre a obra e a vida de Fernando Pessoa, e que abre com a sua máquina de escrever e uma frase
Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade,
apresentada em português e inglês, tal como as outras legendas e tabelas que se vão encontrando ao longo da exposição. De referir ainda que vários objectos, peças e documentos expostos são também legendados em braille e todo o percurso é agora assinalado em pavimento podotátil.
O primeiro núcleo expositivo exalta Os Heterónimos de Pessoa. Confronto ou (des)continuidade no triângulo formado pela foto de Pessoa, o seu instrumento de criação e os nomes dos seus 121 heterónimos que surgem à vez, projectados no solo.
Segue-se a mostra de documentação variada, manuscritos e publicações da época, entre originais e reproduções, estas possibilitando alguma manipulação pelo visitante, num jogo apelativo e interactivo. Mais adiante, são disponibilizados vários audiotextos dos heterónimos que podem ser escutados em lugar confortável e recolhido.
Destacadas estão algumas representações artísticas do poeta por Almada Negreiros, nomeadamente o célebre retrato a óleo de 1954, e vários desenhos a tinta-da-china de alguns heterónimos – Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos –, estudos para mural da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em parede central são ainda mostrados três retratos por Júlio Pomar, estudos para o metro do Alto dos Moinhos.
A fechar esta primeira zona, a sala dos espelhos, provocadora de refração de identidades – Quantos sou? – e que todos podemos experimentar e ao mesmo tempo escutar a construção sonora de Sofia Saldanha e Oriana Alves.
Descemos ao 2º piso. Âmago da exposição com a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. A seção mais valiosa da Casa: os livros que comprou, leu, sublinhou e anotou. Duas prateleiras apostas, onde se enfileiram as lombadas de autores e temas muito variados. Muitos em língua inglesa, outros tantos com dedicatórias de escritores amigos. De literatura, mas também de ciência, matemática, ciências ocultas, de engenharia, sinais dos seus múltiplos interesses, e estudo para a construção dos seus heterónimos. Ao fundo desta sala, que ora escurece ora se ilumina, a estante original de madeira escura.
Um segundo espaço deste piso central é uma sala de leitura, pontuada com algumas frases do poeta:
Ainda uma zona de exposições temporárias, actualmente apresentando o ensaio cinematográfico O Passageiro, filme de Luís Alves de Matos, de 2017, uma encomenda da Casa Fernando Pessoa.
Na etapa final expositiva entramos no espaço onde Fernando Pessoa viveu – O Apartamento. Desenhadas no chão, as divisões originais da casa, até onde foi possível reconstituí-las: o quarto de Pessoa, a sala, a cozinha, um outro quarto, o escritório…. O mobiliário, os retratos fotográficos, os objectos de uso pessoal, ou os que pertenceram a seus pais, documentação variada, contam histórias da sua vida, como a da cómoda alta referida na correspondência com Adolfo Casais Monteiro, ou a réplica da arca onde Pessoa guardou poemas, cartas e livros.
No ‘Quarto das crianças’ brinca-se com folhas, páginas cheias, com tinta escrita, que voaram da mão de Pessoa e se colaram por tecto e paredes, mais uma vez num jogo de negro e luz. Páginas suas e dos seus outros que por fim caem sobre a página onde escreveu a sua última frase, na véspera da sua morte:
I know not what tomorrow will bring / Não sei o que o amanhã trará