No dia 2 de outubro assinala-se os 100 anos de um dos maiores escritores do século XX. No centenário de José Cardoso Pires, a Antena 2 homenageia a sua vida e obra, dedicando-lhe algumas emissões.
Em A Ronda da Noite, na véspera do dia do centenário:
Lavagante, de Mário Barroso – Uma ópera do medo e da resistência
“Vivemos numa sociedade em que as pessoas se devoram a elas mesmas, voltadas para o umbigo.”
Lavagante, a novela de José Cardoso Pires, motivou António Pedro Vasconcelos a escrever o argumento para um filme capaz de mostrar aos jovens de hoje o que foi o fascismo. Após a morte do realizador, Paulo Branco convidou Mário Barroso a levar a levar a cabo a tarefa.
O filme estreia esta quinta-feira, dia do centenário de José Cardoso Pires, com um naipe de atores que inclui Júlia Palha, Nuno Lopes, Diogo Infante, Francisco Froes e Leonor Alecrim.
O realizador Mário Barroso foi convidado de Luís Caetano n’A Ronda da Noite, e ali se ouviu também o realizador Fernando Lopes respondendo à pergunta
“Por que razão é José Cardoso Pires tão apetecível ao cinema?”.
Em A Ronda da Noite, no dia do centenário:
A voz de José Cardoso Pires
Recordamos o homem e o escritor pela memória da rádio. Primeiro do jovem Cardoso Pires na entrevista a Igrejas Caeiro em 1954, na célebre série Perfil de um Artista, depois e já na década de 80, como autor consagrado em dois momentos.
Em Última Edição, e no dia do centenário, uma conversa sobre um livro menos conhecido: Celeste & Làlinha – Por Cima de Toda a Folha, editado pela Relógio d’Água, com ilustrações de Rita Cardoso Pires.
Em Última Edição, do dia 2 de outubro, Luís Caetano conversa com Francisco Vale, da editora Relógio d’água, que voltou a colocar nas livrarias toda a obra de Cardoso Pires. E ouvimos o escritor na memória da rádio sobre algumas das suas obras.
Em A Grande Ilusão, a crítica de cinema Inês N. Lourenço dedica grande parte do episódio de hoje à estreia de Lavagante, de Mário Barroso.
Adaptação de uma novela de José Cardoso Pires, com argumento de António-Pedro Vasconcelos, nas palavras da crítica Inês Lourenço, “é um filme que conjuga muito bem os diferentes aspetos da sua produção”, retratando uma história de amor entre uma estudante e um médico, em plena ditadura salazarista, “contada em jeito de romance noir: há o mistério de uma mulher, a estudante interpretada por Júlia Palha, e há um dispositivo de revelação, uma conversa, que confere um crescendo emocional”. A fotografia a preto e branco torna-o também um objeto “extremamente elegante”.
E ainda..
em A Ronda da Noite, ouvimos Bruno Vieira Amaral, autor de uma das biografias do escritor Integrado Marginal.

Retrato de José Cardoso Pires, por Vitor Palla 1952.
Publicado no livro “Histórias de Amor”
José Cardoso Pires – Um escritor rebelde num país pequeno
No centenário do seu nascimento
Luísa Duarte Santos
José Cardoso Pires é uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa do século XX, com um trajeto de quase 50 anos de vida literária, marcados pela inquietação e rebeldia, pela resistência ao estabelecido, pela descoberta de outros mundos e pela oposição a um “país pequeno”1.
Nascido na Beira Baixa, em Vila de Rei, por vontade materna, com oito dias foi para Lisboa onde viveria. Depois da Escola Primária no Largo de Leão, segue para o Liceu Camões, escola de mestres como Delfim Santos e Rómulo de Carvalho. Deste contacto, talvez tenha surgido a sua hesitação entre a Matemática que chegou a frequentar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e a escrita que inicialmente pretendeu jornalística e posteriormente privilegiou a ficção. Nos tempos de Liceu colaborara esparsamente em jornais juvenis e depois em periódicos nacionais como O Globo ou Afinidades.
Antes de se alistar na Marinha Mercante com 20 anos, ainda tenta o Diário de Lisboa mas é dissuadido pelo padrinho Joaquim Manso, fundador e diretor do periódico, pelas dificuldades com a censura – 30 anos depois torna-se diretor neste jornal. O tempo de embarcado foi breve, cingindo-se a uma única viagem no navio Sofala com destino a Timor; desceu em Moçambique e foi expulso por indisciplina. Após o serviço militar em Artilharia em Vendas Novas e Figueira da Foz, deambula por empregos circunstanciais antes de se aventurar pela publicação de contos.
No primeiro, Salão de Vinténs editado na antologia universitária Bloco, sente logo a mão da censura; também Os Caminheiros e Outros Contos, de 1949, com capa de Júlio Pomar, é apreendido pela Censura, assim como o livro seguinte, Histórias de Amor, de Julho de 1952, ilustrado por Vítor Palla e publicado pela Editorial Gleba, na coleção de bolso Os Livros das Três Abelhas, dirigida pelo arquiteto e por Aurélio Cruz, é retirado do mercado pela Censura um mês depois, por ser considerado imoral.
Apreendido o livro, o autor é também chamado à PIDE e detido durante um breve período. Mais tarde, em 1972, Dinossauro Excelentíssimo escrito no Natal anterior em Londres, um “retrato grotesco de Salazar”2, publicado pela Arcádia, com ilustrações e capa de João Abel Manta, seria um potencial alvo, mas apontado inopinadamente como um exemplo da liberdade na Assembleia Nacional, a Censura ficou sem capacidade de atuar
Os primeiros volumes valem-lhe um grande incentivo por parte de escritores consagrados como Aquilino Ribeiro, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, entre outros. Com uma escrita livre e documental, de pendor cinematográfico pela narrativa sóbria e limpa, em que se sentia o compromisso com a realidade, de manifesta preocupação social e posição de resistência ao regime autoritário português, o envolvimento de Cardoso Pires com o movimento neorrealista é natural. Ademais, a sua afinidade não só com os escritores, sobretudo poetas, mas também artistas e intelectuais deste movimento, tornam as suas relações próximas, como é patente nas capas das primeiras edições daquelas suas obras, ou o prefácio de Mário Dionísio à sua novela de 1958, O Anjo Ancorado.
Apesar dos caminhos em cada uma das suas obras se renovar, como que numa contínua descoberta de novas direções para um novo recomeço – ou chegando mesmo aa alterar edições posteriores -, esse traço de inquietação é ele mesmo uma constante que percorre a sua vida literária. Nesses novos rumos situam-se o ensaio Cartilha do Marialva e também de 1960 a sua estreia na dramaturgia com O Render dos Heróis – peça proibida de ser levada à cena pelo TEUC por parte da PIDE -, os contos Jogos de Azar (1963), O Hóspede de Job (1963) que recebeu o Prémio Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores e foi a primeira obra sua traduzida para francês, e o romance O Delfim (1968) geralmente considerado a sua obra-prima e adaptado ao cinema por Fernando Lopes em 2001.
A par da escrita, as décadas de 50 e 60 foram de intensa atividade, entre a tradução, a incursão pelas lides editoriais com a criação da Folio – Edições Artísticas com Vítor Palla, e a revista mensal Almanaque, e as colaborações na revista Eva e na Gazeta Musical e de Todas as Artes, para além da ida ao Congresso Mundial para a Paz, em Estocolmo e de estadias em Itália, Londres e Brasil. Nessa época, também constitui família, casando com Maria Edite Pereira, irmã do escultor Vasco Pereira da Conceição, em cujo célebre atelier na Praça da Alegria, se reuniam e trabalhavam vários artistas neorrealistas.
Com o 25 de Abril e a Liberdade, a escrita de ficção fica temporariamente de lado: é vereador da Câmara de Lisboa, diretor-adjunto do Diário de Lisboa e protagoniza o primeiro processo judicial de liberdade de imprensa.
Após um longo silêncio, o escritor aproveita para limpar as gavetas, recuperando e editando escritos que a Censura interditara e nos quais evoca momentos com figuras marcantes – lembra a morte do seu grande amigo Alves Redol, homenageia o repórter fotográfico interveniente Eduardo Gageiro, celebra a memória de José Dias Coelho, recorda Candido Portinari num “aceno de até-ver”, dialoga com Elio Vittorini, viaja com Antonioni – , mas, no essencial, auto-questiona-se através da sua relação com os outros, até mesmo no título que escolhe, apossando-se de um poema de Drummond de Andrade, E agora, José? (1977).
Cardoso Pires regressa ao King’s College, e conclui a sua segunda peça Corpo-Delito na Sala de Espelhos, encenada pouco depois pelo Teatro Aberto, em Lisboa. Publica ainda O Burro-em-Pé, contos ilustrados uma vez mais por Júlio Pomar.
Em 1982, sai a Balada da Praia dos Cães, cuja narrativa parte de um crime na Praia do Guincho, granjeando o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, e torna-se à época um best seller. Cinco anos mais tarde, José Fonseca e Costa verte-o em filme.
Em 1985, publica o seu último romance, Alexandra Alpha, situado nos tempos conturbados do pós-revolução e já em ambiência desencantada. Em 1988, regressa aos contos com A República dos Corvos, e em 1994, reúne as suas crónicas do Público, em A cavalo no Diabo.
Depois de vários problemas de saúde, mormente um AVC, escreve uma “viagem à desmemória”, a sua única narrativa autobiográfica, de um tempo sem memória, De Profundis, Valsa Lenta – um último ato de rebeldia pela reminiscência, através da escrita. Ainda em 1997, publica Lisboa — Livro de Bordo e Viagem à Ilha de Satanás.
Entre outros importantes prémios nacionais e internacionais, recebeu o Prémio Pessoa em 1997, e foi agraciado pelo Estado português com a Comenda da Ordem da Liberdade (1985) e a Grã-Cruz da Ordem do Mérito (1989)
José Cardoso Pires morreu a 26 de Outubro de 1998, aos 73 anos, em Lisboa.
E agora, José?
quem te ouve, quem dá crédito à tua liberdade?
1. Testemunho de Lídia Jorge, J. L., 4 novembro, 1998
2. “Auto-retrato José Cardoso Pires”, Diário de Notícias, 27 0utubro 1998, p. 2.