Libreto
Modest Mussorgsky baseado em boris Godunov de Aleksandr Pushkin
Antecedentes
Os factos históricos em que Pushkin e Mussorgsky se inspiram são os seguintes: a 5 de Maio de 1591, o filho mais novo de Ivan o Terrível, o csarevische (filho do Czar) Dimitri, de nove anos de idade, único herdeiro do seu meio-irmão, Feodor I (que tinha sucedido ao pai em 1584), é encontrado morto, devido a uma facada. Ter-se-á matado acidentalmente durante uma crise de epilepsia. Segundo uma hipótese mais recente, recusada por muitos historiadores actuais, Dimitri terá sido assassinado a mando de Boris Godunov, cunhado e principal conselheiro do czar Feodor. Mas o inquérito ordenado pelo governo não lançou nenhuma suspeita sobre ele. Com a morte de Feodor, foi pedido a Boris Godunov, que praticamente já exercia o poder, que aceitasse a coroa imperial. Reinará durante sete anos. Grande estadista, saberá preservar a unidade do império, mas os incêndios, a fome e as epidemias, desgraças exploradas pelas rivalidades politicas, arruínam a sua autoridade e popularidade. No ultimo ano do seu reinado, um pretendente inesperado diz ser Dimitri, o filho do czar, salvo por uma obscura substituição de crianças. Alia à sua causa o rei da Polónia e o jesuíta Rangoni, núncio do Papa, recruta um exército e marcha sobre Moscovo. Boris morre em Abril de 1605, dois meses antes da entrada em Moscovo do pretendente vitorioso que manda assassinar o filho do czar, tornado entretanto Feodor II, e apodera-se do poder. Casa com Marina Mnichek, filha do seu principal aliado polaco. No ano seguinte, é por sua vez assassinado durante um golpe de estado chefiado pelo príncipe Vassili Chuiski. Tornando-se czar, terá de lutar contra um segundo falso Dimitri antes de ser destituído pelos polacos (1610) e levado para o cativeiro. O filho do rei da Polónia reina durante dois anos na Rússia, até que os Romanov subam ao poder (1613).
Na sua adaptação da tragédia de Pushkin – de que só se afasta pelo ângulo de filmagem do seu "drama musical popular" – Mussorgsky conserva vários postulados:
– o csarevische Dimitri está morto e Boris Godunov é provavelmente o assassino;
– o falso Dimitri (1582-1606) é identificado como o ex-monge em fuga Grichka Otrpiev, dito Grigori;
– o casamento com Marina é uma maquinação de Rangoni no interesse da Igreja de Roma;
– a morte de Boris é contemporânea do inicio da revolta, mas os insurrectos ignoram a noticia quando se metem a caminho.
Aos dados históricos são acrescidos dois personagens importantes: Pimen o erudito, e o Inocente ou Santo Louco, símbolo da clarividente ingenuidade do camponês russo. Sobretudo Mussorgsky insiste no papel primordial do povo russo: "Foi o povo russo que eu quis pintar", escreve ele a Répine. O povo é a personagem principal desde o início até ao fim. É o verdadeiro motor da acção e não o seu móbil psicológico, como Pushkin.
Musica e dramaticamente, Boris Godunov é uma das maiores obras-primas da história da ópera. O génio de Mussorgsky dava-lhe uma intuição do acento justo, uma lucidez psicológica, aparecendo no uso dos leitmotiv, um sentimento divinatório da cor musical adequada às situações. Os seus contemporâneos não compreenderam a sua arte e a comissão de leitura do teatro Marinski começou por recusar as duas primeiras versões da obra-prima em 1870 e 1872. Mussorgsky tinha podido ouvir fragmentos da sua obra em casa de Ludmilla Chestakova, a irmã de Glinka em casa dos Purgold. Em 1873, três cenas julgadas aceitáveis são representadas no Teatro Marinski. E a estreia teve enfim lugar graças à influência de Julia Platónova, intérprete do papel de Marina. Se o público da estreia foi entusiasta, a critica mostrou-se reservada. Acusavam Mussorgsky de ignorar as regras da ópera e censuravam-no pela inexperiência das disciplinas clássicas, pelo realismo à maneira de Dostoievski, pela amargura à maneira de Gogol, pelas opções estéticas de vanguarda. A obra foi apresentada com amputações e sofreu outras ao mesmo tempo que as vinte e cinco representações que se seguiram à estreia, até 1882. O próprio Rimski-Korsakov, seu grande amigo, acabou por aceitar corrigir o que havia de mais singular na obra de Mussorgsky. A cena da revolta, por exemplo, foi objecto da mais séria incompreensão. Ela coloca-se normalmente depois da morte de Boris, que é ignorada pelos insurrectos. Ora Rimski-Korsakov inverteu as duas cenas. Ele reorquestra o III acto sem ter compreendido que a "falta de habilidade" é aqui desejada por Mussorgsky, devido à exactidão histórica: reconstituição do equilíbrio sonoro medíocre do "24 violinos" de Marina, que mais tarde tanto iriam desagradar à corte Moscovita. Rimski-Korsakov civiliza-os adoçando os temas populares russos (cânticos de mosteiro ou cânticos de aldeia) que Mussorgsky muito escrupulosamente anotou depois de se ter documentado nas fontes mais eruditas, graças ao seu amigo Stassov. Suprime o toque a rebate, tão inquietante nos prognósticos do Inocente, e recomenda saltar as cenas de Rangoni-Marina e Rangoni-Grigori, sem os quais o duo da fonte (Marina-Grigori) perde o seu significado político e irónico… Em compensação, muitas vezes Rimski-Korsakov enriqueceu brilhantemente a instrumentação. Contudo, infelizmente, corrigiu a harmonia e o ritmo, tomando por faltas ou negligências as invenções surpreendentes de Mussorgsky, libertado de todo o formalismo.
Resumo
Prólogo
1. No pátio de Novodievitchi para onde se tinha retirado Boris Godunov (presumível assassino de Dimitri, filho de czar). Um dos seus esbirros força a multidão a suplicar-lhe que aceite a coroa, que ele finge desdenhar.
2. No Kremlin, defronte da Catedral da assunção, Boris, perseguido pelos remorsos, é coroado com grande pompa sob as falsas aclamações de uma multidão triste e constrangida.
I Acto
1. Na sua cela do mosteiro de Tchudov, o velho monge Pimen redige as suas crónicas da Rússia. O seu companheiro, o noviço Grigori, teria a idade do filho do czar e Pimen conta-lhe a história do csarevische Dimitri. Grigori decide fugir para se fazer passar pelo csarevische.
2. Numa estalagem perto da fronteira da Lituânia, Grigori, fugido do mosteiro, reencontra aqui dois outros monges exilados, Varlaam e Missail. Ele é procurado pela fuga e a estalajadeira ajuda-o a fugir da polícia.
II Acto
Nos aposentos do czar no Kremlin, o boiardo Chuiski diz a Boris que, na Lituânia, um homem gaba-se de ser Dimitri, o filho do czar, e prepara um golpe de estado. Para apaziguar a angustia do czar, Chuiki conta que ele próprio viu, exposto numa igreja, o corpo da criança morta, relato que provoca alucinações em Boris.
III Acto
No castelo de Sandomir, na Polónia, a princesa Marina Mnichek, amante do falso Dimitri, sonha ser czarina; ela encoraja o seu amante nos seus intentos, ajudada pelo Jesuíta Rangoni.
IV Acto
1. Uma multidão miserável defronte da catedral de São Basílio. Crianças fazem troça do inocente e roubam-lhe o chapéu. Quando o czar sai da catedral, o inocente acusa-o publicamente da morte do pequeno Dimitri, mas Boris perdoa-lhe. Esta importante cena, suprimida por Mussorgsky na versão definitiva, sem dúvida por ordem de censura imperial, é actualmente muitas vezes reconstituída.
2. Numa sala do Kremlin, a Duma delibera sobre a revolta conduzida pelo falso Dimitri. Aparece Boris, dominado pelas suas alucinações. O testemunho de Pimen confirma a morte de Dimitri: realizam-se milagres no seu túmulo. Sentindo o fim próximo, o czar manda vir o filho Feodor, que designa como seu sucessor, e morre.
3.Na floresta de Kromi, a revolta é encorajada por Varlaam e Missail. O usurpador, a caminho de Moscovo, é aclamado pelo Povo. O quadro termina com os prognósticos do Inocente que chora pelas desgraças que aguardam a Rússia.