Libreto
Girolamo Giusti
EstreiaTeatro de Sant’Angelo, Veneza em 14 de novembro de 1733
AntecedentesMotezuma – O México em Veneza
Vivaldi (1678-174]) conta-se entre os compositores cuja obra reflecte a íntima simbiose entre um artista e a sua cidade. Vivaldi e Veneza parecem confundir-se. Os contrastes da cidade são os da sua música. Assim como nas telas de Canaletto, o tom crepuscular e a sombra dos canais contrasta com a luminosidade aberta da Praça de São Marcos de Veneza, também a música de Vivaldi alia solenidade e extravagância. Construção e fluidez, o sagrado e o profano.
Pensar em Vivadi normalmente significa pensar no violino, nos seus mais de quinhentos concertos instrumentais, nas Quatro Estações, no l’Estro Armonico… Pensar em Vivaldi significa pensar em inúmeras obras vocais como o Gloria, a oratória Juditha triumphans e a cantata Nulla in mundo pax sincera, ou lembrar aquelas extraordinárias virtuosas que eram as meninas do orfanato Ospedale della Pietà, onde Vivaldi ensinou violino de forma descontinua durante vinte anos, de 1703 a 1723, quando o compositor estipula com a direcção do Instituto um contrato com a única obrigação de apresentar dois concertos novos por mês. Nessa altura, em 1706, o compositor, de vinte e oito anos, era já citado conjuntamente com o pai como um dos mais notáveis violinistas venezianos no anuário Guida de’forestieri de Vincenzo Coronelli. Esse ano de 1706 era ainda o ano em que Vivaldi, ordenado sacerdote três anos antes, era dispensado de celebrar missa bem como de todas as outras actividades sacerdotais, devido a uma «fraqueza de peito congénita». Vivaldi volta ao Ospedale della Pietà em 1735 como maestro de’corcerti onde fica até à sua morte, «por inflamação interna» em Viena, nos finais de Julho de 1741.
No entanto, hoje não há dúvida de que Vivaldi foi também, e sobretudo, um dos compositores de óperas de maior sucesso na primeira metade do século XVIII e um dos empresários mais sagazes do seu tempo. O contrato entre Vivaldi e o teatro de ópera foi, seguramente, muito precoce e multiforme, apesar da sua verdadeira estreia como compositor de ópera ter sido tardia. O pai, Giovanni Battista (também chamado «il Rossi» devido à cor dos seus cabelos, característica que passaria ao filho Antonio), era um barbeiro natural de Brescia que, em 1685, se torna violinista na Capela de São Marcos, estava envolvido no mundo empresarial da ópera em Veneza. Para além da influência do pai, é certa a presença de Antonio Vivaldi em 1710, como violinista, na orquestra do Teatro de Sant’Angelo, um dos locais onde será frequente e cada vez mais notória a sua comparência. Mais, não obstante os encargos no Ospedale della Pietà tivessem pouco que ver com a música teatral, é, no entanto, certo que o maestro di coro do Instituto aquando da entrada de Vivaldi como professor de violino, era Francesco Gasparini, ou seja, um dos compositores de ópera mais populares da época.
Simplificando, é como se a carreira de compositor de Vivaldi se desenvolvesse em dois caminhos paralelos: Por um lado, a composição de concertos atravessa como um fio ininterrupto toda a vida do músico; Por outro, a produção operática de Vivaldi constitui um filão certamente menos copioso do que o das obras instrumentais, mas, tal como os concertos, estende-se por toda a vida do compositor. São obras que circulam pelos teatros de Itália e de meia Europa: Vicenza, Brescia, Florença, Mântua, Roma (onde, em 1723 Vivaldi conhece o mecenas e melómano Cardeal Pietro Ottoboni), Milão, Reggio nell’ Emilia, Ancona e Ferrara (onde em 1737 o Cardeal Tommaso Ruffo acusa o compositor de conduta imoral, como sacerdote que não celebra missa e como amigo excessivamente íntimo da cantora Anna Giro, proíbindo-lhe mesmo qualquer actividade empresarial, o que causa a Vivaldi um gravíssimo prejuízo económico), e depois Hamburgo, Brno e Praga.
Como é óbvio, a maior parte dos Drammi per musica de Vivaldi são estreados nas salas venezianas, e, em particular, no Teatro de Sant’Angelo. Aí são postas em cena cerca de metade das composições teatrais de Vivaldi, entre as quais, a 14 de Novembro de 1733, Motezuma. Tratava-se do regresso de Vivaldi aos palcos venezianos, agora com cinquenta e três anos. Após uma ausência de cinco anos, a sua última ópera apresentada em Veneza tinha sido Rosilea ed Oronta, estreada uma vez mais no teatro Sant’Angelo no Carnaval de 1728. Por volta dos anos em que foram apresentadas Rosilea e Motezuma, desembarcaram em Veneza jovens compositores da chamada «escola napolitana», o primeiro entre todos, Leonardo Vinci, apoiado pela colaboração de um jovem destinado a tornar-se no maior libretista do seu tempo: Pietro Metastasio. Entre 1725 e 1726, os dois conseguiram representar em Veneza a Didone Abbandonata, numa nova versão, apenas um ano depois da primeira audição absoluta em Nápoles com música de Domenico Sarro e, em primeira audição absoluta, Siroe, Re di Persia. Vivaldi, como empresário sagaz que era, compreendeu de imediato que o vento do êxito operático estava a mudar, e ele próprio musica um Siroe que é apresentado em 1727 no Teatro público de Reggio nell’Emillia. De Metastasio, Vivaldi porá em música ainda a Olimpiade (Veneza, Teatrode Sant’ Angelo, Fevereiro de 1734, Ópera que é posta em cena logo depois de Motezuma), e Catone in Utica (Verona, Teatro Filarmónico, Maio de 1737).
Torna-se assim claro que o retorno de Vivaldi à cena do Teatro de Sant’Angelo está marcado pela concorrência directa com as óperas dos Jovens «napolitanos» e é, talvez por essa razão, que Vivaldi decide apostar, com Motezuma, não só num drama praticamente novo na música, mas também num tema de grande conteúdo espectacular e num local insólito.
Acção da ópera Motezuma, composta por Vivaldi, com libreto de Alvise Giusti, desenrola-se no México, durante a violenta invasão espanhola no início do século XVI, sob o comando de Hérnan Cortês (Fernando). No libreto de Giusti, porém, o conflito entre a civilização autóctone e o invasor europeu surge mitigado pelo amor que une a filha do rei Motezuma, Teutile e o irmão do comandante espanhol, Ramiro. Com efeito, será graças ao reconhecimento generalizado da autenticidade desta relação que a paz é por fim alcançada entre as duas facções inimigas.
Ao libretista não interessava claramente redigir um libreto de cujas entrelinhas se pudesse extrair uma mensagem maniqueísta. Ambos os líderes surgem obstinados nas suas acções, muitas vezes no limiar da insensatez; ambos erram, ambos são humanos. Fernando chega a desconfiar do próprio irmão quando este o acabara de salvar. Motezuma procura por todos os meios vingar-se, amiúde cobardemente através de traição. Nenhum dos líderes pode arvorar-se em paradigma de moralidade. Tão-pouco pretendia Giusti destacar a diferença cultural e religiosa dos povos. Procuram-se simplesmente motivos que possam enriquecer o enredo. Assim, os termos «destino» ou «deuses» – como Giusti ressalva – são meros motivos poéticos, não devendo interpretar-se como entrando em contradição com a religião católica reiterada expressamente pelo autor.
Ao invés, porém, transportar a acção para o México conferia uma dimensão de exotismo ao espectáculo, não o privando ao mesmo tempo de certos elementos que intimamente jogavam com a sensibilidade estética veneziana. Note-se a ponte, a laguna e a praça mexicanas – e, porém, tão venezianas – que enriquecem visualmente, como pano de fundo da acção, o impacto estético da ópera.
ResumoA acção tem lugar cerca de 1519 durante a conquista espanhola do México.
Primeira Parte
Depois de uma devastadora derrota às mãos do conquistador espanhol Fernando Cortês, o líder mexicano Motezuma lamenta a perda do poder e da sua honra. A mulher, Mitrena, roga-lhe que permaneça orgulhoso perante a derrota. A sua filha, Teutile, relata que os invasores espanhóis procuram Motezuma. Este está decidido a oferecer-lhes resistência. Entrega a Mitrena um punhal e diz-lhe que, caso sejam aprisionadas pelos espanhóis, deverá usá-lo em Teutile e em si própria. Acreditando que Ramiro – seu amante e irmão de Fernando – a atraiçoou, Teutile está pronta para morrer. Eis que Fernardo chega e leva Teutile como sua refém. Escondido, Motezuma atinge Fernando com uma seta e foge saltando para a lagoa. Ferido, Fernando ordena ao irmão, Ramiro, que persiga o seu atacante.
A sós com Ramiro, Teutile acusa o amante de ter ganho a sua confiança para melhor a atraiçoar em nome da sua glória pessoal. Exige que os espanhóis batam em retirada. Dividido entre o sentido do dever de soldado e o seu amor por Teutile, Ramiro escolhe o dever.
Entretanto, Motezuma, disfarçado de soldado espanhol, esgueira-se até ao quarto de Fernando enquanto continua dar azo aos seus sentimentos de raiva e de sede de vingança. Num primeiro impulso, planeia matar Teutile pela fraqueza que a impediu de pôr fim à própria vida. Ao ouvir a conversa entre Teutile e Ramiro, Motezuma revela a sua presença. Desembainha a espada e ameaça matar Teutile, mas Ramiro em boa hora o detém. Ouve-se Fernando que se aproxima, e Teutile e Ramiro forçam Motezuma a regressar ao seu esconderijo. Fernando teme um possível ataque dos mexicanos e encarrega Ramiro de descobrir o que planeiam. Uma vez a sós com Teutile, Fernando tenta saber o que se passa na mente do irmão. Teutile defende Ramiro. Este regressa exaltado e relata que Mitrena acabara de chegar à frente de uma armada de barcos. Ela deseja falar com Fernando e pede que lhe seja concedido um salvo-conduto. Discute violentamente com Fernando, o que provoca a irrupção de Motezuma, de espada em punho, pronto a matar Fernando. Ramiro surge por detrás de Motezuma, desarma-o sem que Fernando o veja e empurra-o para o esconderijo. Alertado pelo barulho. Fernando vira-se. Ao deparar com o próprio irmão de espada em riste, acusa-o imediatamente de traição. Mais uma vez Motezuma irrompe, lançando acusações a Fernando e Mitrena. Fernando acusa Motezuma de traição e ordena que seja encarcerado. A sós com Mitrena, Motezuma, esmagado pelo peso da humilhação, suplica à mulher que o vingue. Mitrena apela aos deuses que protejam o México do espanhol tirano e incita os seus compatriotas à revolta. O general mexicano Asprano jura continuar o combate.
A sós com Fernando, Ramiro acusa o irmão de tratar Motezuma com desnecessária inclemência. Mas Fernando não percebe a magnanimidade do irmão e atribui o seu comportamento ao amor que sente por Teutile. Mitrena regressa e Fernando dispensa Ramiro. Mitrena deseja um confronto decisivo; descreve a maneira como os espanhóis trouxeram a civilização ao seu país, maltratando os mexicanos, enganando-os e, finalmente, violando todas as suas leis. Se Fernando e os seus soldados não abandonarem o México, ver-se-ão embarcados numa luta até à morte. Arrogante, Fernando insiste no seu direito de se defender e ordena a libertação de Motezuma para que a se enfrentem num combate singular.
Segunda Parte
Ramiro incute aos soldados espanhóis esperança na vitória. Fernando e Motezuma encontram-se, finalmente, face a face no campo de batalha. Durante o combate, Motezuma sente que lhe faltam as forças e chama os seus guerreiros para que dominem Fernando.
Teutile suplica a Ramiro que abandone o México para seu bem agora que Fernando é prisioneiro de Motezuma. Mas Ramiro quer vingar-se e, sob o seu comando, os soldados espanhóis abrem fogo sobre os barcos mexicanos. Sucumbindo ao desespero, Teutile tenta atirar-se às chamas mas é travada por Mitrena. Chega Asprano e anuncia que o oráculo dos deuses exige que Teutile e os espanhóis sejam sacrificados para que volte a imperar a paz no país. Embora vencida pela dor, Mitrena acaba por assentir. A seu ver, Fernando é o espanhol que deverá ser sacrificado com Teutile; foi ele que atraiu sobre si a ira dos deuses. Ordena então que seja queimada a prisão onde se encontre Fernando.
Ramiro e os seus soldados libertam Fernando da prisão. Escondem-se quando ouvem Motezuma que se aproxima. Este apercebendo-se de que os guardas foram assassinados e a porta deixada aberta, entra na prisão. Ramiro fecha então a porta e retira-se com os soldados. Asprano chega com guerreiros mexicanos. Obedecendo às ordens de Mitrena, lançam fogo à prisão. Horrorizado, Asprano ouve os gritos de Motezuma, amaldiçoando-o.
Os sacerdotes conduzem Teutile ao altar onde irá ser sacrificada. Atormentado, Asprano chega ao local e relata ter ouvido Motezuma, e não Fernando, arder na prisão. Mitrena é possuída pela demência e abandona-se a delírios de vitória e vingança. Ramiro força a sua entrada no templo à frente de soldados e salva Teutile. Sozinha, Mitrena apercebe-se de que os seus deuses perderam todos os seus poderes.
Desesperada, decide matar-se quando, de súbito, aparece Motezuma que sobreviveu às chamas escapando por uma passagem secreta na prisão. Marido e mulher estão prontos a morrer, mas não sem antes conseguirem vingança.
Celebra-se a vitória de Fernando. Este anuncia aos mexicanos que agora têm um novo rei e um novo deus. Conquistou o trono, não para si. Mas para a glória de Espanha. Motezuma e Mitrena atacam furtivamente Fernando e Ramiro, mas são desarmados por Teutile e Asprano. Fernando mostrasse magnânimo e declara que ambos poderão continuar a reinar no México enquanto vassalos do rei espanhol. Ele próprio deseja abandonar o país deixando para trás o irmão Ramiro, como prova da boa fé espanhola uma vez que este desposará Teutile. Quando Ramiro declara que o sacrifício satisfará os deuses, Motezuma e Mitrena consentem a união. Motezuma percebe então que o México irá renascer.