LibretoAnónimo
EstreiaPalacio da Ribeira, Lisboa no Carnaval de 1739
AntecedentesA ópera no tempo de D. João V
A ópera, durante o Antigo Regime, funcionava como um espelho do ambiente de corte. A ópera séria dissemina-se pelas cortes de toda a Europa principalmente pelo estatuto de arte monárquica. Representativa de poder e prestígio. Também o papel que a música assume no reinado de D. João V (1706-1750) é o de instrumento privilegiado de propaganda. Estava assim de acordo com as cúpulas de poder que mais o inspiram. Tanto o rei Luís XIV como o imperador Leopoldo I, seu sogro, tinham na música uma estratégia de representação pública de todo o prestígio de ambos. Mas em Portugal era a música litúrgica considerada mais digna para o propósito. Nem poderia deixar de o ser. A visibilidade que D. João V reclama para si é aquela que só Roma detém. De algum modo a importância que a ópera observa em Roma, neste período, é replicada em Portugal mas numa escala bastante reduzida.
A primeira metade do século XVIII observa, em Portugal, a constituição de um modelo absolutista de governação. A via por que esta transformação se opera, relaciona-se sobretudo com a expansividade do fanatismo religioso da personalidade de D. João V. A isto não será estranho que, durante todo o seu reinado, o influxo de ouro vindo do Brasil tivesse sido cada vez maior. Por outro lado a conjuntura política, principalmente a partir do fim da Guerra da Sucessão Espanhola (1713), garantia a estabilidade necessária para a afirmação crescente do soberano tanto no país, como no mapa europeu. A estratégia que adopta é a do reforço da organização da Igreja.
Uma vez que o rei encima a sua hierarquia, quanto mais poder reclama para ela, mais poder acaba por abraçar. Este objectivo tem na diplomacia um veículo preponderante. Tanto o conjunto de embaixadas sumptuosas a Roma, como a presença da armada na derrota dos turcos na Batalha de Matapan (1717), fazem com que a notoriedade do monarca vá crescendo. Através do papa Clemente XI a Capela Real torna-se Colegiada em 1710. Seis anos depois passa a Patriarcal. A elevação a esta dignidade faz com que o próprio capelão do rei seja também o patriarca. Coerentemente a prática musical sofrerá mudanças que a identificarão cada vez mais com a da Capela do Papa. É bastante significativo o facto de ter sido contratado o mestre-de-capela do sumo pontífice, Domenico Scarlatti (1685-1757), que deixou as funções da Capela Giulia em 1719. É também neste ano que é imposto o Rito Romano na Capela Real. Em termos musicais resultou na importação de livros litúrgicos, partituras e contratação de excelentes músicos vindos do Vaticano.
Até aqui a criação musical em Portugal estava remetida para o isolamento de uma estética ibérica seiscentista. A ideia de formar uma Roma Lusitana terá na música uma série de iniciativas que visam actualizar a sua dinâmica ainda que centrada sobretudo na Capela Real. A renovação participa também de processos e métodos de ensino dentro e fora de Portugal. Em 1713 é criada a escola de música da Capela Real. Pouco tempo mais tarde será denominada por Seminário da Patriarcal. Com os fundos da Patriarcal, os seus melhores alunos serão enviados a Roma como bolseiros. António Teixeira, Joaquim do Vale Mexelim, João Rodrigues Esteves e Francisco António de Almeida terão assim oportunidade de estudar com os melhores mestres do barroco romano.
É uma prova da nova mentalidade científica e de abertura a novos modelos artísticos que se vai instalando em Portugal. Mas enquanto, noutras áreas, ela ocorre fora da esfera religiosa, a música permanece dentro. Neste quadro a música profana não encontra, de facto, condições para assumir o relevo que detinha nas cortes Europeias desde o século anterior. Mas era Roma que interessava a D. João V emular. Até à altura em que são enviados os bolseiros, a cidade papal nunca tinha conhecido uma relação amistosa com a ópera. Sendo um espectáculo de Carnaval, ela foi, na passagem para o século XVIII, alvo de várias medidas proibitivas pela autoridade papal. Era sobretudo como entretenimento privado que ia subsistindo. Assim os espectáculos decorriam nos palácios de individualidades como as soberanas exiladas Cristina da Suécia e Maria Casimira da Polónia, os cardeais Pamphili e Otoboni e o príncipe Francesco Maria Ruspoli. A corte portuguesa tratará de acolher a ópera justamente na base do entretenimento privado. O local era o Paço da Ribeira e as datas que se seguem demonstram o fraco interesse que o rei tinha no género. É provável que a primeira representação que se assistiu remonte a 1721. Talvez com música de D. Scarlatti.
Note-se que, por esta altura, G. F. Handel fazia já fortuna em Londres compondo ópera séria para um público burguês bastante alargado. Contudo é mais seguro afirmar que a primeira ópera, ou dramma comico da cantarsi, a ser levada à cena foi La pazienza di Socrate, com música de Francisco António de Almeida e com libreto de Alexandre de Gusmão, secretário do rei. No Carnaval de 1733. Toda a música profana tocada na corte era de carácter privado. Outros géneros dramáticos, como as serenatas e cantatas, eram interpretados principalmente nos aposentos do rei e da rainha.
Ao contrário das outras cortes, a portuguesa prefere o género cómico. Ao deslocar a importância da música, como instrumento representativo de poder, para o lado religioso, a ópera não carecia dessa função. Assim só os círculos do rei e da rainha, Maria Ana da Áustria, estavam autorizados a assistir. Só excepcionalmente haveria convidados. Mas quando isto acontecia eram relegados para os bastidores. A ópera não se destinava directamente para eles. Os libretos cómicos, com personagens de classes sociais inferiores, permitiam que a aristocracia pudesse troçar à vontade sem se rever em nenhum dos eventos passados em palco. Só isto revela o carácter hermético da sociedade portuguesa de então: a aristocracia não se dá com a nobreza que, por sua vez, não se dá com a burguesia. A forma como se configurava a oferta musico-teatral em Lisboa reflecte isto mesmo. A Academia da Trindade era destinada principalmente à nobreza ainda que, ocasionalmente, contasse com eclesiásticos no público. Aqui sim, era interpretada opera seria.
Coerentemente com a sua perspectiva sobre o teatro musical, D. João V terá assistido, incógnito, a um espectáculo. Claro que oficiosamente. As classes inferiores tinham, também desde 1733 na Casa dos Bonecos do Bairro Alto, a oportunidade de assistir às óperas cujos libretos de António José da Silva, o Judeu, faziam bastante sucesso. Somente seis óperas foram desempenhadas na corte, durante este reinado. O rei raramente assistia, certamente por estar muito ocupado com a construção do maior palácio conventual à época Mafra. Não assistiu à La Spinalba.
Francisco António de Almeida
(1722-1755)
Sabe-se pouco da vida deste compositor, organista e cantor. Esteve activo entre 1722 e 1752. Algumas datas esparsas permitem-nos apenas ter uma ideia geral da sua trajectória artística e de vida. Terá estado em Roma pelo menos a partir de 1722. Foi o ano em que a sua oratória Il Pentimento di Davidde foi interpretada na Igreja de S. Girolamo della Carita. Em 1724 terá frequentado a academia que Pier Leone Ghezzi organizava. Ao elaborar o único retrato conhecido do português, este pintor e caricaturista não deixou de enaltecer as suas qualidades de compositor e de cantor. La Giuditta, outra oratória, tomou lugar no Oratorio dei Filippini na Chiesa Nuova. Aconteceu em 1726, ano em que regressa a Portugal para, provavelmente, vir a ocupar o posto de organista da Patriarcal. Participa portanto na dinâmica representativa da música religiosa. Verá a sua serenata Il Trionfo della virtù ser esempenhada como celebração da elevação à dignidade de cardeal de D. João da Mota e Silva. Isto no ano de 1728. Cinco anos depois La Pazienza di Socrate estreia no Paço pelo Carnaval. Desta primeira ópera em estilo italiano em Portugal só se conserva o manuscrito relativo ao terceiro (último) acto. O libreto tinha como base um texto de Nicolò Minato que serviu como poeta da corte de Leopoldo I. A produção deste poeta estava em actualização por parte de compositores como Handel, J. A. Hasse e G. F. Telemann. Compôs mais duas óperas para o Paço: La Finta Pazza, em 1735, e La Spinalba, quatro anos depois. Esta é a única que sobrevive completa. Tanto a produção de música religiosa como a teatral obedecem a uma qualidade superior de escrita.
Juntamente com António Teixeira, Carlos Seixas e João Rodrigues Esteves, Francisco António de Almeida integra o grupo dos compositores portugueses mais importantes do seu tempo. O período em que estuda em Roma é marcado pela mudança das políticas restritivas em relação à ópera. A partir de 1720, a cidade começa a conhecer uma certa dinâmica comercial. Os teatros, que até aí eram fechados ou destruídos por ordem papal, começam a providenciar uma actividade constante. Os teatros Capranica e Alibert dão prova cabal disto. Este último foi mesmo objecto de um alargamento para a temporada de Carnaval de 1726, sendo renomeado como Teatro delle Dame. Reabre com Didone Abbandonata sendo a música de Leonardo Vinci e libreto de Pietro Metastasio. Tratou-se do primeiro deste poeta que viria a ser o mais importante para o género durante todo o século XVIII. Os compositores mais em voga eram F. Gasparini, A. M. Bonocini, A. Caldara e sobretudo A. Scarlatti. Estes, entre 1710 e 1722, assinaram mais de metade das óperas ouvidas em Roma. Tanto do ponto de vista musical como poético era também uma época de transição. A. Scarlatti tinha já desenvolvido a forma musical da ária da capo, cujo efeito era o de fornecer o clímax emotivo no fim de cada cena. Metastasio começa nesta altura a fixar as convenções literárias próprias da ópera e que servirão de modelo para inúmeros compositores. Em suma, Roma, apesar de tudo, inscreve-se no quadro de mudanças verificadas na ópera e que têm como resultado a sistematização de todo um estilo. A proveniência deste relaciona-se com Veneza e Nápoles. Não é por acaso que a música do compositor português tem muito que ver com a de G. B. Pergolesi (1710-1736), por exemplo. São aqueles, de resto, os centros irradiadores do estilo musical secular que se pratica na Europa no barroco tardio. Assim, Francisco António de Almeida toma contacto com a génese do idioma da ópera do século XVIII e transporta-o para cá. Para além dos géneros profanos e religiosos já mencionados, escreve também uma missa e vários motetes. Infelizmente grande parte da sua obra perdeu-se por via do terramoto de 1755. É provável que também ele aí tenha perecido.
La Spinalba Ovvero il vecchio matto
Dramma comico da rappresentarsi in musica
A denominação de ópera para as representações musico-teatrais só ganha uniformidade ao longo do século XVIII. Termos como dramma per musica, commedia per musica ou dramma comico da rappresentari in musica coexistiam sem prejuízo do conceito por que hoje a conhecemos. Neste caso é correcto afirmar que se trata da ópera mais antiga escrita por um português que se conserva na íntegra.
O libreto é de autoria anónima, sendo de admitir a hipótese de ter sido escrito pelo próprio compositor. La Spinalba segue as regras da escola napolitana da época. Três actos precedidos de uma abertura (Overtura) também em três andamentos: Presto, Andatino a mezza voce e Minuet. Trata-se de uma comédia de enganos amorosos com um final feliz (lieto fine) na forma de um coro em que todos participam. As oito personagens fazem parte da galeria de tipos cómicos italianos. Spinalba aparece como uma mulher disfarçada de homem (Florindo); Vespina é a sua criada esperta; Elisa, a eterna apaixonada; Togno, o criado; Leandro e Ippolito como os pretendentes patéticos; Dianora, a velha; Arsenio, o velho louco. No meio disto existe ainda uma poção que cura. Não falta também a moral da história que se relaciona com a importância da amizade e com a aprendizagem da vida através dos males de amores. Os três actos estruturam-se através das cenas em que a intriga decorre por intermédio dos recitativos. Cada uma das cenas é rematada com uma ária da capo. A sua função é a de captar o momento mais emotivo do argumento no afecto vivido pela personagem que a canta. Como se a acção aí se detivesse. Serve também para permitir o efeito dramático da sua saída de cena.
Uma fonte da época relata que La Spinalba estreou no domingo, 25 de Janeiro de 1739, no teatro que se montava temporariamente no Paço da Ribeira. Terá durado cerca de quatro horas e, mercê do rigoroso protocolo da corte, apenas teve como público o conde da Ericeira e alguns criados. Dos bastidores terão assistido não mais que quatro membros da nobreza. Passará ao esquecimento. Mas já no início do século XX, o teórico francês Albert Lavignac reserva-lhe uma entrada elogiosa na sua Encyclopédie de la musique et Dictionnaire du Conservatoire (Paris, 1920-1931): "Pela análise desta partitura, verificamos a existência de uma escrita muito hábil, um bom desenvolvimento melódico, sem os floreados de que se abusou mais tarde, e uma certa unidade modulatória que não é corrente nos compositores desta época.. A primeira audição moderna aconteceu em 1965 no S. Carlos, por intermédio da Orquestra de Câmara Gulbenkian. Foi presentada em Roma e Paris três anos depois. Em 1969 a mesma orquestra gravou La Spinalba para a editora Philips. Valeu o Grand Prix da Académie National du Disque Lyrique. Infelizmente esta edição em vinil encontra-se esgotada. Entre as décadas de 1980 e 1990 foi objecto de novas encenações em Londres e Paris. Voltou à cena, novamente no S. Carlos, em 1993.
ResumoI Acto
Dianora, a madrasta de Spinalba, pede-lhe explicações em relação a esta querer-se ausentar de casa durante quinze dias e estar vestida de homem. Confidencia-lhe que assim pode acompanhar de perto Ippolito, a quem ainda ama mas por quem foi abandonada. Ainda que apreensiva em relação à eacção do pai, Dianora deixa-a partir. Quando Arsenio chega, a esposa mente-lhe dizendo que a sua filha foi sozinha, e portanto disfarçada para se proteger, até casa da prima Elisa. Esta, ao chegar, denuncia a falsidade e Arsenio enfurece-se. A sua honra foi tocada. Elisa, por sua vez, confessa à criada Vespina que está apaixonada por Florindo (Spinalba sob disfarce) e que nada sente pelos seus pretendentes Ippolito e Leandro. Ippolito reafirma o seu amor por Elisa e tenta fazer de Vespina uma aliada para influenciar a patroa e decepciona-se por nada conseguir da criada. Surge uma barca com Togno, que vem cantarolando, e Leandro. Este encarrega o criado de levar uma mensagem a Elisa. Entretanto, Dianora acerca-se de Togno e pergunta-lhe por Spinalba, uma rapariga vestida de homem. Chega a vez de Arsénio fazer a mesma pergunta. Para troçar do velho louco, Togno diz que a viu e diverte-se com Vespina da partida que fez. Mas Ippolito surpreende Togno confundindo-o com um pretendente rival. Exige saber o que ele faz ali. Aquele aflige-se não sabendo o que responder. Mas Spinalba (aliás Florindo) chega a tempo de o salvar. Aproveita para tentar convencer o seu antigo namorado a não andar atrás de Elisa porque esta nunca poderá gostar de alguém que abandonou Spinalba.
II Acto
Dianora, assustada com a loucura do marido, pede a Elisa que convença o tio de que Spinalba regressará em breve. Elisa pede opinião sobre o caso a Vespina mas esta nada diz. Leandro e Ippolito desafiam-se para um duelo mas Elisa aparece para acalmar os ânimos. Arsenio, cada vez mais transtornado, confunde Togno com Caronte, o barqueiro mitológico que transportava as almas para a outra margem do rio dos mortos, e depois de desenhar um círculo imaginário para que não se escapasse, pede-lhe que o leve. Mas Togno consegue afastar-se, assustado, da loucura do velho e conta tudo a Vespina, pedindo-lhe que o ajude a poder sair do círculo. Esta troça do coitado mas promete-lhe um encontro, mais tarde, no jardim. Arsenio, sem sair do seu delírio mitológico, confunde a criada com Calíope, uma das musas que o irá acompanhar. Elisa, ingénua, declara o seu amor por Florindo. Já durante a noite, Togno vem ter com Vespina acompanhado por Dianora que procura o marido. Arsenio continua a perder o juízo.
III Acto
Spinalba pede a Togno que interceda junto de Leandro, não o deixando ir embora. Dianora e Elisa combinam com Togno que este se mascarará de médico para tentar curar Arsenio. Dianora finalmente revela a verdade sobre Florindo a Elisa que, com arrependimento, começa a pensar no seu antigo amor Leandro. Este fica confundido com as verdadeiras intenções de Elisa mas acaba por se acalmar. Enquanto isso, Arsenio dá cada vez mais largas à demência. Canta, dança e por fim adormece. Será acordado por Togno, já disfarçado, e isso fá-lo zangar-se. Tanto que Togno volta a fugir de perto do velho e, ainda de médico, encontra Vespina. Aproveita para lhe dirigir galanteios. Ela confessa ao doutor que sente que Togno não a ama. Ele arranca imediatamente o disfarce e dá-se a reconciliação. Dianora consegue abrandar a fúria de Arsenio dizendo-lhe que a filha está para chegar. De seguida toda a intriga se resolve: Spinalba desculpa-se perante o pai, Leandro volta para Elisa, Dianora acalma-se por ver o marido de volta ao normal, e Ippolito aceita novamente o amor de Spinalba.