Estão patentes na Galeria Ratton, em Lisboa, e na Casa da Cerca, em Almada, duas exposições de obras de Maria Beatriz.
Uma das mostras, Calendário, apresenta os últimos trabalhos da artista e podem ser vistos até 14 de Janeiro.
A outra exposição, Trabalhos de Casa, de carácter antológico, dá-nos a conhecer o seu percurso artístico desde os anos 60 até à sua produção recente, através de cerca de seis dezenas de trabalhos, em desenho, gravura, pintura sobre materiais diversos, azulejaria, e pode ser visitada até 29 de Janeiro.
Maria Beatriz conversou com Mafalda Serrano, a propósito destas exposições
Para escutar a entrevista, clicar aqui.
… pôr asas nos nossos desejos, inventar, criar.
O nome de Maria Beatriz, apesar de ser conhecido da maioria dos especialistas em arte, talvez diga pouco ao grande público. A este afastamento relativo dos círculos artísticos portugueses não tem sido estranho o facto da artista viver na Holanda desde há décadas, assim como a sua personalidade discreta; mas outros fatores contribuirão decerto para ter estado, em grande medida, arredada de um circuito mais comercial, ou por ter uma esparsa presença nalgumas das grandes instituições artísticas portuguesas, embora, como diz a responsável da Casa da Cerca, Ana Isabel Ribeiro, aonde foram realizadas as duas antológicas da artista, "Maria Beatriz sempre esteve e está por aqui".
Nascida em 1940, em Lisboa, Maria Beatriz vai dedicar-se às artes plásticas após uma inicial e breve incursão pelo curso de Biologia. Opta então pelo curso de Pintura na Escola de Belas Artes que também cedo abandona devido à crise académica de 1961-62. Após uma estadia em Londres, em 1962-63, começa a ter lições de desenho com Alice Jorge que a leva para a Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, onde estavam, e passaram, alguns dos mais importantes artistas da época. Começa então a experimentar as técnicas de gravura em metal; é lá que encontra o gravador inglês Stanley William Hayter, fundador do célebre Atelier 17, estúdio de gravação em Paris, que tinha vindo a Lisboa dar um seminário sobre esta técnica artística.
Em 1965, é-lhe atribuído o 1º prémio em Pintura na Exposição de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes, e no ano seguinte vai para Paris, como bolseira da Fundação Gulbenkian, onde retoma os estudos com S. W. Hayter, no Atelier 17, durante dois anos. Os anos na capial francesa foram tempos de aprendizagem artística e de crescimento cultural, mas também político e cívico.
A partir de 1970, fixa residência na Holanda, realizando estudos de Pintura e Artes Gráficas, diplomando-se na Academia Livre de Oficina de Artes Visuais (Vrije Academie Werkplaats voor Beeldende Kunsten) conhecida por Academia Livre (Vrije Academie), em Roterdão, dirigida pelo "artista anarquista" George Lampe. Em 1974, obtém uma bolsa do Ministério da Cultura holandês que lhe permite ir ao México, país onde a gravura teve um importante papel na modernidade artística.
Nesse ano, de regresso aos Países Baixos, começa a leccionar Gravura (de 1974 a 1987) e depois Pintura e Desenho (de 1988 a 1990) na Academia Livre de Haia. É bolseira da Amsterdam Kunstfonds em 1977, e depois, mais uma vez, do Ministério da Cultura holandês entre 1978 e 1980, e desde esta data até 1987 recebe do governo holandês o subsídio dado aos artisttas, BKR. A partir de 1983, começa a trabalhar com a Galeria Asselyn, em Amesterdão, onde expõe diversas vezes.
Realizou exposições no Museu de Arte Moderna de Arnhem (1987, 2005), no Kunstuitleen K.N.S.M., em Amesterdão (1998, 2003), no Centro Cultural Calouste Gulbenkian em Paris (2004), na Gallery 59/SBK Zuid /Adam (2009), e em Portugal, na Casa da Cerca, em Almada (1998, 2003), na Galeria Palmira Suso (1998, 2000), na Galeria Diferença (1999), no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (2002), na Galeria Ratton (2009, 2012), no Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sôr (2011) e no Museu da Eletricidade (2012), entre outras.
Está representada em Portugal, nas coleções da Caixa Geral de Depósitos, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Casa da Cerca – Almada, do Museu da Cidade, em Lisboa, do Museu do Traje, da Fundação Ilídio Pinho (Porto), da Fundação EDP, na Colecção Jorge Gaspar, e no Município de Ponte de Sor, e no estrangeiro, no Nederlandse Bouwfonds – Gemeente Hoevelaken, na coleção John Loose (Amesterdão), na coleção Bram Volkers (Amesterdão), no Congresgebouw (Haia), em CRM, Rijksdienst (Haia), no Museu Haags Gemeente (Haia), no Museu de Arte Moderna de Arnhem, no Museu Stedelijk (Gouda) e na Coleção S.B.K. (Amesterdão).
A exposição Trabalhos de Casa (1960-2013), de caráter antológico como o título indica, leva-nos a conhecer, retrospetivamente – literal e museograficamente – o percurso por algumas das séries de trabalhos que Maria Beatriz realizou desde os anos 60 até à sua produção recente.
No piso do rés-do-chão do espaço expositivo da Casa da Cerca, duas séries, uma de 1990-1992 e a outra de 2010-11, assinalam o início da visita; obras escolhidas pela sua temática comum, a infância, e também por se adequarem a um espaço usualmente utilizado para atividades do serviço educativo com crianças.
As ilustrações para a história Muito Riso, Pouco Siso, de Júlio Moreira, ainda não publicada, revelam desde logo o sentido poético da linguagem plástica de Maria Beatriz, assim como um dos seus modos de fazer: o recorte e a colagem, compondo e recompondo elementos, trabalhando-os numa íntima relação com um todo.
Brinquemos à guerra é uma obra de dupla significação; se a sua quase singela aparência remete de imediato para um universo infantil, em que crianças brincam, e brincam como ainda tantas com brinquedos bélicos, a data em que foi feita a obra, esclarece-nos quanto à origem, e alcance, desta obra: a guerra dos balcãs.
A série "A Guerra do meu jardim", onde esta obra se integra, foi, como conta a artista, inspirada por aquele acontecimento devastador, e estes seus trabalhos são, à semelhança de outros, "reflexões sobre o que acontece perto e longe, a nossa condição, o explodir de uma guerra, a finitude da vida, a precariedade, a busca do nosso lugar neste pequeno ponto do universo" (p. 13).
Emília Ferreira, curadora da Casa da Cerca.
No piso superior da Casa da Cerca, três outros espaços são ocupados por vários momenos do percurso artístico de Maria Beatriz.
Num primeiro, uma grande sala, ilumina-se e ilumina-nos para grandes obras, na sua dimensão física mas sobretudo na dimensão estética desta artista.
Sobressaem sem dúvida os ‘veludos’, grandes painéis pintados e/ou impressos, com uma técnica ensaiada e adaptada por Maria Beatriz.
A série "Os Comedores de batatas" tendo como ponto de partida a obra homónima de Van Gogh, e já mostrada, em 2012, numa exposição do Museu da Eletricidade, resulta de um seu interesse, antigo, por esta obra do pintor holandês. Decide visitar então Nuenem, pequena cidade neerlandesa onde tinha morado o pintor e onde realizou inúmeras obras sobre a vida de camponeses, tecelões e outros trabalhadores, retratando a miséria e a desesperança da gente humilde dessa região mineira.
Maria Beatriz quis conhecer essa zona onde tinha vivido o pintor, mas também sentir a sua realidade atual; é dessa visita que surge esta série: "Desde que as minas fecharam, o desemprego é grande e a precariedade em que vive a maioria da população salta aos olhos. Passei lá um domingo", conta em entrevista à curadora Emília Ferreira, e viu "muitas famílias a comer batatas fritas" (p. 15), alimento barato e acesssível aos menos afortunados.
Maria Beatriz recolhe e celebra assim o "ensinamento" de Van Gogh que quis "dar a ver a vida dos desmunidos. (…) mostrar-se do lado deles", e também ela, fá-lo aliando "em grande liberdade de expressão, a procura pictórica à crítica social implícita" (p. 14).
Mas outras obras de Maria Beatriz ocupam este espaço da Casa da Cerca; obras de Desenho – ou de desenhos pintados? ou de pinturas desenhadas? – como prefere designar, já que o desenho é a base da pintura, e no qual se sente livre para fazer e refazer, apagar e rasgar, recortar e recolar; alguns trabalhos da série "Oisive jeunesse, à tout asservie…", inspirada no poema de A. Rimbaud, três obras em azulejo, e uma outra, originalíssima, da série "Vermelho", desenhada e bordada, e como os bordados quase delimitada por um bastidor.
A sala seguinte é dedicada à série ‘Mesas", com três instalações em acrílico sobre contraplacado, 8 desenhos do acervo da Casa da Cerca e um grande desenho/colagem de 1979.
Mais uma vez o recorte como processo artístico de Maria Beatriz, desta vez em contraplacado e feito pelas suas próprias mãos.
A ‘mesa’ sentida pela artista como lugar basilar de partilha, de lugar de presença / ausência, de histórias contadas e de silêncios, lugar familiar e de centralidade feminina, onde o ato de alimentar é fim e meio dos afetos (ver também texto de José Manuel dos Santos, no catálogo, p. 78-81)
"As minhas linhas adquirem uma presença física que preciso sentir. Daí a colagem." (Maria Beatriz)
A última sala é dedicada à gravura. Dos anos 60, com gravuras em metal que "espelham o ambiente que vivíamos durante o fascismo" (p. 13), aos anos de 1973-74, experimentando outras técnicas da gravura, como a serigrafia e a litografia, com algumas referenciações à História da Arte renascentista e flamenga.
É na Galeria Ratton que encontramos os últimos trabalhos de Maria Beatriz, na exposição intitulada Calendário, numa significação de trabalho diário, um quase programa que se auto-impõe e de que desfruta, ultrapassando as vicissitudes de uma saúde já com algumas fragilidades.
Neste Calendário que se inicia em 2015, Maria Beatriz ao mesmo tempo renova e retoma algumas das suas constantes.
Em primeiro lugar, uma ode ao feminino, cruzando a sua recorrente inspiração poética – Contra el agua, días de fuego. / Contra el fuego, días de agua (Octavio Paz) -, com as múltiplas formas e metamorfoses do ser mulher.
À direita, o primeiro trabalho realizado desta série.
O vermelho, cor de mulher, cor de sangue, de dor e de vida, para a vida; fundo ou forma, recortada ou ausente, nos lábios ou nos cabelos, delimitando rotundas nuas formas alvas – "uma idade branca veste os seus corpos e um voo de vespas atordoadas de primavera salpica-as de pétalas sujas como os corais cinzelados num recife de naufrágio" (Nuno Júdice, p. 26) -, manchando olhares, apagando sorrisos, ocultando faces, sonegando-nos a própria face – ver auto-retratos, assim identificados no local pela artista, nas páginas 36 e 43, da 2ª parte do catálogo).
O vermelho – cor de Maria Beatriz – cor de sentimento, de inquietação, de revolução; cor da carne, do corpo sem pele – interior revelação -; cor de poder e de violência, contida, pela brancura, pelo vazio dos espaços, pelo raspar e rasgar das linhas – "Restam as paredes, as fendas em que a mão se desloca rompendo o gesso de uma ternura de cal" (Nuno Júdice, p. 34, idem).
O recortar de Maria Beatriz torna-se nalguns destes seus trabalhos, um rasgar, que de tão meticuloso – como aliás todas as intervenções pictóricas dos fundos nas suas obras – nos parece espontaneamente orgânico, e nunca decorativo.
Se, em trabalhos anteriores, o cortar e recortar tinha sobretudo um propósito de composição e recomposição de elementos, de reorganização do espaço e do mundo que constrói, nesta série Calendário assume-se em estruturação das próprias formas e das cores, nas figuras que acolhem essa solução.
E nesse trabalho de reinvenção da figura, Maria Beatriz leva a depuração ao limite, retirando a figura dos fundos, esvaziando-a do que lhe é exterior, individualizando-a, quebrando-lhe o elo de sustentação com um real, tornando, não abstrato, mas ausente um qualquer enquadramento, como se as figuras vogassem num território sem matéria, de sombras.
Nesta exposição, ainda têm lugar – até porque a Galeria Ratton é, e tem sido, um desses lugares – o azulejo. Técnica com a qual Maria Beatriz em uma "relação antiga", e cujo resultado final se oculta temporariamente, como a fotografia e a gravura, para se revelar no fim do processo; assim, nunca se sabe "ao certo o que vai sair do forno", e é "dessa incerteza, dessa espera" que se faz o gosto da artista por este meio (p. 16, da 1ª parte do catálogo).
*O número das páginas indicado ao longo do texto, correspondem às do catálogo partilhado pelas duas exposições.
Texto de Luísa Duarte Santos; fotos de Jorge Carmona / Antena 2 RTP
Para ouvir a conversa de Maria Beatriz com Mafalda Serrano, a propósito destas exposições, clicar aqui.
Horário das Exposições:
(Entradas livres)
Casa da cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada
de terça a sexta, das 10h00 às 18h00
sábados e domingos, das 13h00 às 18h00
de terça a sexta, das 10h00 às 18h00
sábados e domingos, das 13h00 às 18h00
Galeria Ratton, Lisboa
de segunda a sexta, das 15h00 às 19h30