Libreto
Emanuel Schikaneder
Estreia
Teatro Freihaus de Viena em 1791
Antecedentes
Composta, não para uma casa de ópera, mas para o popular teatro suburbano de vaudeville dirigido por Schikaneder, A Flauta Mágica é uma das últimas obras de Mozart, escrita numa altura em que o compositor se encontrava desesperado por dinheiro. O libreto, baseado numa imensa variedade de fontes, mistura elementos de pantomina, farsa, partes faladas e cenas de efeitos especiais com a filosofia mística maçónica que Mozart subscrevia. A começar nos três acordes solenes com que se inicia a abertura, a ópera contém muitas referências aos rituais e simbolismo desta organização secreta. O mundo da Flauta é construído de certo modo segundo o conceito Maçónico do universo: o sol e a lua governam – aqui Sarastro e Tamino são associados ao sol, e ouro, a Rainha da Noite e Pamina à noite, à prata – como na lua, o elemento feminino da água. No início da história, Papageno está ao serviço da Rainha, e Monastatos ao serviço de Sarastro. Tudo isto muda no fim, devolvendo o ar – que seria Papageno como um passarinheiro – ao seu governador, o sol, e devolvendo a terra – a gruta onde Monastatos vive – ao seu governador, a feminina noite.
Para além destes aspectos chegou a ser sugerido que a Rainha da Noite representava a Imperatriz Maria Teresa, e Tamino o seu filho José II, um adepto do iluminismo. Mas o enredo continua a ser uma teia esplendidamente intrincada, que dificulta todas as tentativas de o interpretar como uma alegoria coerente. Uma das teorias defende que, por alguma razão, as naturezas morais de Sarastro e da Rainha da Noite foram invertidas durante a fase de elaboração do libreto – de que outra forma se poderá explicar que seja a malévola Rainha da Noite a controlar a magia benévola da flauta e os três jovens, ou que Sarastro tenha recorrido a um patife como Monostatos?
A verdade é que o argumento desta ópera gerou estéreis controvérsias, inevitáveis cada vez que se é obstinado a compreendê-lo após uma primeira leitura. É evidente que se trata de uma cerimónia de iniciação carregada de significados e de símbolos esotéricos. Mas não é menos evidente que a obra era também destinada ao público comum, pouco aberto à espiritualidade. Com uma maravilhosa habilidade, Mozart permitiu a esta obra-prima realizar a sua dupla vocação, ficando bem entendido que o sentido escondido dos símbolos maçónicos só podia ser compreendido pelos iniciados. A incrível mistura do cerimonial iniciático, do gracejo no espírito do Singspiel, e de magia infantil, encontra a sua coerência graças a dois factores: o génio musical e dramático de Mozart, por um lado, e a sua fé no ideal maçónico, por outro, o que o aproximava de Schikaneder, ainda que este tenha sido expulso da loja após dois anos.
Não sendo nem um grande poeta nem um grande pensador, mas um homem de teatro e cheio de experiencia, Schikaneder foi sem duvida o inspirador das cenas de farsa e de magia, enquanto o mérito das partes mais nobres voltava a ser de Mozart e dos conselhos de Ignaz von Born, venerável da loja da Verdadeira Concórdia, cuja personalidade lhe inspirou a personagem de Sarastro.
Mozart adorava esta ópera que lhe tinha custado grandes esforços. Nos seus últimos dias gostava de seguir as representações através da imaginação, ajudado pela marcação do seu relógio. Depois da sua morte o sucesso continuou e fez a fortuna de Schikaneder.
Porque é também uma obra infantil, apesar do "alto significado" que lhe reconhece Goethe. "Como se a infância aumentasse no fim, a flauta mágica é a mais infantil das suas obras", escreveu P.J. Jouve. De facto o público infantil reagiu muito favoravelmente ao maravilhoso filme de Bergman. Mas é impossível pegar no libreto pelo seu sentido literal, tal como a acção de qualquer outra ópera: é uma liturgia, como Parsifal, nem mais nem menos absurda para o profano do que outras liturgias, também todas elas carregadas de símbolos… Se a Flauta é o relato de uma iniciação, é também uma obra cujo desenlace é o triunfo do amor sobre os obstáculos que lhe são postos. E se, pela leitura do libreto, a personagem principal parece ser Tamino, pela graça da sua música ela torna-se Pamina.
Resumo
I. Acto
Um jovem príncipe, perdido numa região selvagem, foge de uma serpente monstruosa prestes a devorá-lo, e desmaia. Três damas de negro, tapadas com um véu, saem de um templo e matam a serpente com lanças de prata. Admiram a beleza do jovem e os seus propósitos surpreendem pela futilidade. Tamino, o jovem príncipe, volta a si e vê chegar uma personagem coberta de penas. É o passarinheiro Papageno, que revela ao príncipe que se encontra nos domínios da Rainha da Noite. Reaparecem as três Damas que entregam ao jovem um retrato de Pamina, filha da Rainha, que foi levada por um poderoso demónio, Sarastro. A Rainha aparece e confia a Tamino a missão de libertar a sua filha. As Três Damas levam-lhe uma flauta mágica em ouro, cujo papel de talismã e de alento nas provas que terá que superar será modesto. Ao mesmo tempo dão a Papageno um pequeno carrilhão e encarregam-no de acompanhar o herói. Três jovens rapazes indicar-lhe-ão o caminho.
Pamina, por seu lado, entra em contenda com o seu guarda Monostatos, mouro de cara negra que a deseja bestialmente. Aterrorizada, desmaia. Eis que aparece inesperadamente Papageno. O homem de pele negra e o homem coberto de plumas aterroriza-se mutuamente e fogem cada qual para o seu lado. Contudo Papageno volta e revela à jovem que um belo príncipe recebeu a missão de libertá-la e que já a ama. Ela própria sente nascer em si o amor pelo seu salvador.
O grande final do primeiro acto vai-nos esclarecer pouco a pouco sobre a situação real. Subitamente o tom torna-se religioso. Os três rapazes conduzem Tamino e deixam-no diante três templos. Tamino dirige-se em primeiro lugar para o templo da razão e tenta entrar, ainda inconsciente da iniciação na qual está empenhado. Uma voz grave fá-lo recuar: "Para trás!". Tamino dirige-se então para outro templo, o da Natureza. Novo "Para trás!". Segue-se o Templo da Sabedoria. Aí, bem mais hesitante, bate discretamente. Aparece um velho sacerdote que lhe pergunta o que vem ele procurar nesse santuário. "A posse do amor e da virtude", responde Tamino. A sua iniciação começou: a sua resposta prova que ele acabou de tomar consciência. Tamino questiona o Sacerdote, e descobre que Sarastro está longe de ser o cruel tirano descrito pela Rainha da Noite: na verdade ele é o líder de uma nova ordem dedicada às virtudes da Sabedoria, da Razão e da Natureza. A Rainha da Noite é a vilã, e Sarastro está apenas a proteger Pamina das suas intenções malévolas. Quando fica só, Tamino toca a sua flauta mágica; ao longe Papageno responde-lhe com a sua flauta de Pan. Papageno conseguiu fugir com Pamina e, perseguidos por Monostatos, são atraídos pelo som da flauta de Tamino. Quando se encontram, Tamino e Pamina apaixonam-se instantaneamente, sendo levados à presença de Sarastro. Tudo no seu aspecto, bem como as suas palavras, inspira respeito. Se impõe a sua autoridade à jovem, é para o bem dela, diz Sarastro, para a subtrair à influência da sua mãe, uma mulher impermeável à Sabedoria. Monostatos é castigado pela forma como tratara Pamina e os dois jovens são convidados a submeterem-se às provas cerimoniais que precedem a iniciação na sua ordem. Assim se põe fim a uma busca amorosa de uma desconcertante ingenuidade, para se começar algo bem mais maduro e consistente.
II Acto
A assembleia dos sacerdotes, solenemente reunida, decide admitir Tamino às provas. Sarastro explica-lhe que espera uni-lo a Pamina, que lhe foi destinada pelos deuses, e que eles poderão formar o casal perfeito, virtuoso e esclarecido. Vê-se agora de modo evidente que Sarastro reina sobre a luz e que as suas intenções são generosas. Mas a rainha da Noite tem os seus planos: Tamino e Papageno são visitados pelas três Damas que aparecem com a intenção de os levarem de volta para a causa da Rainha da Noite. Entretanto, esta aparece a Pamina. A Rainha explica a Pamina que o seu pai se despojou do Sol com sete auréolas em favor dos iniciados de Ísis. Doravante este símbolo é trazido por Sarastro, excluindo a rainha da Sabedoria e da Luz e fazendo-a soberana da Noite. Ela não aceita; queria que a sua filha persuadisse Tamino a fugir com ela e que ela fosse o instrumento da sua vingança. Na sua famosa ária, a rainha da Noite apela ao assassínio de Sarastro, ameaçando Pamina com as consequências da sua recusa em matar Sarastro com o punhal que lhe está a pôr na mão.
Desesperada Pamina não tem descanso: Monostatos volta à carga e só a intervenção de Sarastro livra Pamina deste homem de cara negra. Monostatos é expulso por Sarastro. Entretanto Tamino e Papageno têm que se submeter às provas do silêncio e da comida. Para Papageno, um tagarela incorrigível, estas exigências tornam-se impossíveis de cumprir. Os três Rapazes aparecem novamente em cena para trazerem de volta a flauta a Tamino e os carrilhões a Papageno. Juntamente com os instrumentos, os rapazes trazem uma copiosa refeição: Tamino, que toca a sua flauta, passa a prova abstendo-se de comer, já Papageno não resiste e atira-se à comida. Entretanto o som da flauta volta a atrai Pamina. Mas, ligado á promessa do silêncio, Tamino não responde a nenhuma das suas palavras de amor e faz-lhe sinal para se ir embora. Ela exprime a sua ternura e o seu castigo perguntando "como pode ele resistir?". Já Papageno, não resiste de todo: Perante uma mulher velha e feia que se diz ser sua amada, Papageno desata fazer troça, mas fica entusiasmado quando ela se transforma na bonita Papagena, a companheira que ele sempre desejou. Como parte da sua prova, Papagena é retirada rapidamente da sua presença.
A prova do silêncio é igualmente dura quando Pamina e Tamino, de vendas nos olhos, são de novo postos frente a frente, no meio do círculo dos iniciados. Aí, Sarastro tira a venda que cobria os olhos de Pamina, abrindo para a luz esta filha das trevas, e convida os jovens a despedirem-se antes das últimas provas impostas a Tamino. Se este for mal sucedido, eles nunca mais se tornarão a ver. Pamina quer pôr fim aos seus dias com o punhal da sua mãe. Oportunamente os três Rapazes aparecem; persuadem-na a ser perseverante e conduzem-na a Tamino.
Diante das montanhas, no local das últimas provas, dois homens de armadura negra lêem uma inscrição inquietante, própria para impressionar a imaginação dos pretendentes. Pamina surge num enternecedor arrebatamento de amor e Tamino reforça a sua determinação em vencer as provas. Pamina não o abandonará, juntos abordarão as duas últimas provas, a muralha de fogo e a de água, ela conduzindo-o e ele tocando a sua flauta. Unidos, superam as provas.
Agora é Papageno que está desesperado: ameaça enforcar-se se não puder ficar com Papagena. Quando está prestes a apertar o laço, os três Rapazes intervêm e Papageno encontra-se finalmente com Papagena… Última intervenção da Rainha da Noite: ela prometeu a sua filha a Monostatos para que em troca ele lhe abra os acessos subterrâneos do templo. Mas ela é empurrada para as trevas, e o jovem par, vitorioso das provas, é acolhido por Sarastro na luz da Verdade.