LibretoSalvatore Cammarano
EstreiaNápoles 1835
AntecedentesJanet Dalrymple devia ter pouco mais de vinte anos quando morreu em 1669. Ela pertencia a uma família importante. Seu pai James, o primeiro Visconde de Stair, foi um dos jurisconsultos mais respeitados da história da Escócia, eminente professor de leis na Universidade de Glasgow. As suas já extensas propriedades cresceram ainda mais quando ele se casou com Margaret Ross, herdeira de Balneil em Wigtonshire. A geniosa Lady Margaret viveu até uma idade avançada, e granjeou fama como defensora inflexível da prosperidade e prestígio da casa Dalrymple, a qual, nos duzentos anos seguintes, haveria de dotar a nação escocesa de uma série notável de militares, literatos, políticos e advogados.
Como não se conhece nenhum retrato de Janet, cabe-nos imaginá-la talvez frágil e delicada, de tez muito branca e uma longa cascata de cabelos loiros – quem sabe ruivos – caindo pelos ombros, a emoldurar um rosto de faces rosadas e grandes olhos claros sempre assustados.
Sem que a família dela soubesse, Janet e o jovem Lord Rutherford, membro da nobreza menor e praticamente sem dinheiro, apaixonaram-se perdidamente e juraram entregar-se um ao outro. Juntos, quebraram uma moeda de ouro, o que equivalia a um compromisso solene. Janet – segundo se disse depois – invocara sobre sua cabeça todos os demónios do inferno caso viesse a romper o noivado. Mas a mãe Margaret, que acreditava piamente na submissão universal à sua vontade como um direito divino que lhe fora concedido, tinha planos muito diferentes, e combinou o casamento da filha com Lord David, filho e herdeiro dos ricos Dunbar de Baldoon, que além de sangue azul possuíam vastas propriedades na mesma Wigtonshire onde Lady Margaret já possuía grandes extensões de terra, recebidas por herança. Nada mau, para os dois lados, aumentar o latifúndio através do casamento.
Tão ocupadas estiveram as duas famílias em acertar os detalhes do contrato que se esqueceram de avisar a noiva, a qual, quando finalmente soube, se recusou, alegando já estar comprometida com Rutherford. A mãe, furiosa, inventou uma desculpa esfarrapada segundo a qual qualquer noivado que não tivesse sido aprovado pelos pais não tinha valor, e descartou Rutherford sem a menor cerimonia através de uma carta seca. Ele respondeu indignado: conhecia os seus direitos, e só aceitaria a quebra de compromisso se a ouvisse dos próprios lábios de Janet. Lady Margaret foi obrigada a concordar com a visita de Rutherford a Janet, mas com a condição de que ela também estivesse presente durante esse encontro. Janet, apavorada, recitou tudo o que a sua mãe lhe havia ditado e dispensou o namorado. O jovem lorde perdeu as estribeiras. Atirou com toda a raiva a sua meia-moeda aos pés da ex-noiva, insultou a mãe, amaldiçoou a filha e toda a família e saiu a bater com a porta de forma a sublinhar que nunca mais voltaria para ver Janet.
Janet, completamente apática, muda, foi conduzida ao altar como um autómato, sem vontade própria, com o olhar perdido na distância. A cerimónia aconteceu no dia 24 de Agosto de 1669, seguida por uma grande festa. Quando começou o baile, o novo casal, como era de praxe, retirou-se para a câmara nupcial para consumar o casamento. Não demorou muito tempo para que um grito pavoroso, um uivo de gelar o sangue, atravessasse as paredes do castelo e chegasse até o salão de baile. Percebendo que o grito provinha do quarto do casal, os parentes mais próximos apressaram-se a arrombar a porta, e depararam-se com uma cena estarrecedora. Caído próximo ao limiar da porta, David Dunbar agonizava numa poça de seu próprio sangue. Tinha sido apunhalado pela noiva. A pobre Janet, que nada vestia a não ser uma camisola de tecido fino empapada de sangue, estava encolhida num canto próximo à chaminé da lareira, com um estranho sorriso fixo no rosto e a murmurar frases sem nexo. A infeliz não conseguiu suportar tanta pressão. Enlouqueceu completamente.
Janet Dalrymple jamais recuperou a razão e morreu poucos dias depois, a 12 de Setembro. Lord David, ao contrário do que se esperava, sobreviveu aos ferimentos. Por via das dúvidas, nunca mais se casou, e o fim da sua vida foi, no mínimo, prosaico. Doze anos depois, David Dunbar, literalmente, caiu do cavalo. Durante uma viagem, sofreu uma queda da sua montaria e partiu o pescoço.
Cento e cinquenta anos após os tristes eventos que levaram à morte de Janet, Sir Walter Scott, sempre à procura de argumentos para escrever mais uma daquelas novelas de fundo histórico passadas na sua Escócia natal que o fizeram rico e famoso, deparou-se com a crónica daquela tragédia e resolveu transformá-la num romance. Como os Dalrymple, na primeira metade do século XIX eram ainda muito influentes e actuantes em vários sectores do governo, Scott, extremamente cauteloso, resolveu evitar qualquer possibilidade de um processo legal. Assim, transferiu a sua narrativa do sudoeste da Escócia, perto da fronteira da Inglaterra, para o extremo oposto do país, o sudeste, nas montanhas de Lammermoor, e baptizou o seu livro como The Bride of Lammermoor (A Noiva de Lammermoor). Alterou também a cronologia da história, trazendo-a alguns anos para a frente, para o período imediatamente anterior à unificação da Inglaterra e da Escócia, durante o reinado de Guilherme III de Orange e sua esposa Maria II da Inglaterra, ambos protestantes, embora Maria II fosse filha do rei católico Jaime II Stuart. E como uma mera tentativa dos Dalrymple em aumentar o património, embora real, não parecesse ao autor da novela motivo suficiente para justificar uma tragédia de amor e sangue destas proporções, Scott, sempre atento ao público, resolveu recontar, desta vez em trajes escoceses, a história de Romeo e Julieta.
Janet transformou-se em Lucy Ashton, filha de Sir William e de Lady Ashton, enquanto Rutherford tornou-se Edgar Ravenswood, cuja família, por motivos políticos e religiosos, é inimiga mortal dos Ashton, que inclusive ocupam, no momento da narrativa, o castelo que um dia pertenceu aos ancestrais de Edgar. Como todos já sabem, Lucy e Edgar se apaixonam. Os Ashton, porém, em busca de protecção política durante tempos difíceis e de mudanças, forçam o casamento de Lucy com Lord Arthur Bucklaw, um inimigo político e pessoal de Edgar. Após o casamento, Edgar desafia o novo marido e o irmão da noiva para um duelo no dia seguinte. Tal duelo, entretanto, jamais se realizará: durante a noite de núpcias, Lucy apunhala o marido, mas os médicos conseguem salvá-lo. Logo a seguir, a jovem morre enlouquecida. Edgar sem saber de nada, ao cavalgar de madrugada para o local do duelo, é tragado por uma poça de areia movediça e desaparece para sempre, cumprindo uma antiga – e sinistra – profecia.
Com os seus fantasmas, mistérios e torres em ruínas, The Bride of Lammermoor é um típico exemplo de romance gótico, género de novela que floresceu entre o final do século XVIII e o início do XIX entre os europeus anglo-saxónicos, cujo grande representante é o Frankenstein (1818) de Mary Shelley.
No ano de 1819, quando a novela de Scott foi publicada, o romantismo firmava as suas raízes no ceio da ópera italiana. Pouco a pouco, os teatros líricos da península foram-se despedindo do classicismo, cujos argumentos tinham por praxe fazer com que a razão triunfasse sobre as emoções, encerrando a ópera com uma lição de moral e um final feliz sempre que possível, e passaram a abraçar cada vez com mais força a explosão romântica. De repente, fazer uma personagem pôr em causa a sua vida por uma paixão e morrer ou matar por amor e ciúme, encerrando o espectáculo de forma trágica e sangrenta – embora, no princípio, com o cuidado de fazer com que as mortes ocorressem atrás do palco afim de não chocar o público -, passa a estar na ordem do dia. Vai-se abandonando o mundo greco-romano que foi moldura das óperas barrocas e clássicas, e desenha-se uma tendência para escolher argumentos de fundo histórico ambientados na Europa num período compreendido, na grande maioria das vezes, entre a Idade Média e o final do século XVII. Sobre este pano de fundo, os protagonistas debatem-se ao sabor do vendaval de emoções descontroladas, amando, odiando, enlouquecendo e lutando. Dentro desta linha, consolida-se, de forma lenta e firme, uma preferência do público e dos compositores de ópera italianos pelos romances passados na Inglaterra e na Escócia, que são, nos libretos, tratados com muito pouco rigor histórico e geográfico, fazendo daqueles países, muitas vezes, exóticas e misteriosas regiões.
Há exemplos dessa ambientação já nas óperas dos pré-românticos Giovanni Simone Mayr (Ginevra di Scozia, 1801; La Rosa Bianca e La Rosa Rossa, 1813) e Gioachino Rossini (Elisabetta Regina d’Inghilterra, 1815; La Donna del Lago, 1819), e também nas óperas dos primeiros românticos italianos como Michele Carafa (Elisabetta di Derbyshire, 1818) e Carlo Coccia (Maria Stuart, Regina di Scozia, 1827). Os dois expoentes da geração de compositores seguintes tampouco deixaram de musicar libretos passados na Escócia ou Inglaterra. Vincenzo Bellini estreou La Straniera em 1829 e I Puritani em 1835, enquanto o fértil Gaetano Donizetti compôs, entre outras, Alfredo il Grande (1823), Emilia di Liverpool (1824), Il Castello di Kenilworth (1829), Anna Bolena (1830), Rosmonda d’Inghilterra (1834) e Maria Stuarda (1835).
As obras de Sir Walter Scott eram muito conhecidas e estavam na moda na Itália da primeira metade do século XIX. Elas continham as intrigas e os contrastes de que os compositores de ópera do romantismo necessitavam. Serviram de base para uma infinidade de óperas compostas em vários países europeus. Não é por isso de se espantar, que Gaetano Donizetti escolhesse La Fidanzata di Lammermoor, a tradução italiana do livro de Scott, como tema para a nova ópera que ele tinha de estrear em Julho de 1835 em cumprimento de um contrato assinado com o Teatro de São Carlos de Nápoles. Era um assunto perfeito. A violência das paixões geradas por um amor impedido de se realizar pelo antagonismo de duas famílias inimigas, estimulava a fantasia criativa do autor, como ele próprio sempre afirmou. Além disso, a narrativa não apresentava quaisquer problemas de lesa-majestade ou de agressão à igreja que pudessem despertar o olhar desconfiado da censura. Contava ainda o facto de que o argumento era conhecido, já havia servido, apenas na Itália, para três óperas anteriores, Le Nozze di Lammermoor de Carafa (1829), e duas La Fidanzata di Lammermoor, respectivamente criadas por Luigi Rieschi em 1831 e por Alberto Mazzucatto em 1834, e, portanto, bastante presentes na memória do público de ópera.
Aquilo que pode parecer ao espectador de hoje algo monótono, a repetição do argumento, para os italianos da primeira metade do século XIX funcionava justamente ao contrário. O interesse maior do público focava-se no canto, nas possibilidades que a partitura criava para que os intérpretes pudessem exibir suas habilidades vocais e extasiar os espectadores do teatro. Por isso, tanto melhor quanto mais conhecido o argumento, já que assim, ninguém teria de perder tempo em entender uma nova história e podia ficar atento ao desempenho dos tenores e sopranos. Reutilizar argumentos era uma prática antiga e corriqueira. Basta lembrar-mo-nos que antes da versão definitiva de Rossini, O Barbeiro de Sevilha teve nada menos de dez versões, ou que o maior libretista do classicismo, Pietro Metastasio, escreveu apenas 27 libretos, utilizados variadíssimas vezes por inúmeros compositores. Alguns deles chegando a servir de base para mais de sessenta óperas, sempre com o mesmo título.
Donizetti teve a felicidade de ter como libretista o napolitano Salvatore Cammarano, que além de poeta inspirado e experimentado, exercia no Teatro de São Carlos – onde Donizetti era director artístico – uma função equivalente à do actual director de cena. Tinha grande experiência de palco, sabia o que funcionava e o que não funcionava, e compreendia como poucos a essência do melodrama romântico italiano, do qual seu poema Lucia di Lammermoor é um dos mais perfeitos ícones. Versos como Regnava nel silenzio/Alta la notte e bruna; Verrano a te sull’aure/I miei sospiri ardenti/Udrai nel mar che mormora/l’eco de’miei lamenti e Tu che a Dio spiegasti l’ali/O bell’alma innamorata, túrgidos do melhor espírito do romantismo, ao associar o íntimo das personagens às forças da natureza como se essa fosse uma caixa de ressonância do estado de espírito dos protagonistas naquele determinado momento, tiveram o condão de induzir Donizetti a conceber melodias inesquecíveis para musicá-los. Estes e outros trechos memoráveis desta ópera, nascidos do casamento perfeito entre os versos do libretista napolitano e a música do fecundo bergamasco, hoje fazem parte da memória colectiva dos amantes de ópera.
O lado prático de Cammarano não era menos brilhante. Num prodígio de compressão, o poeta-encenador eliminou vários personagens principais ao transformar o livro de Scott em ópera, embaratecendo imediatamente a produção e permitindo que a ópera continue a ser montada ainda hoje. Cammarano fundiu o pai de Lucy e seus dois irmãos em apenas um irmão mais velho, Enrico, forma italianizada do Henry Ashton original. Além disso, o libretista teve visão suficiente para matar e enterrar Lady Ashton pouco antes da ópera começar, facto que, além de eliminar mais uma personagem, permitiu que se desenvolvesse um corolário importante, situando na morte da mãe a origem do crescente estado maníaco-depressivo da heroína que terminará por levá-la à total insanidade. Como de costume nas óperas italianas, os outros personagens também tiveram seus prenomes "nacionalizados". Arthur Bucklaw ficou Arturo, o que aparentemente lhe trouxe azar, pois ao contrário da história real e do livro de Scott, ele morre apunhalado na noite de núpcias. Edgar tornou-se Edgardo di Ravenswood, e sua amada, que nascera Janet e já fora chamada de Lucy Ashton, transformou-se finalmente em Lucia di Lammermoor, nome através do qual atingiu a imortalidade.
No início daquele mesmo ano, Donizetti foi a Paris a convite de Rossini, então diretor do Théâtre-Italien. Rossini tinha comissionado a Donizetti e a Bellini novas óperas para aquela temporada. Donizetti compôs o drama veneziano Marin Faliero, que embora de qualidade e relativamente bem recebido, teve seu sucesso completamente eclipsado pela estreia retumbante da derradeira ópera de Bellini, I Puritani. Foi a sensação da temporada, com a famosa cena de loucura de Elvira, a principal personagem feminina, que Bellini calcou, segundo ele próprio, na protagonista de Nina ossia La pazza per Amore (1789), de Giovanni Paisiello. Tanto Nina quanto Elvira enlouquecem quando o namorado as abandona, mas recuperam a razão com a volta deles, e as óperas terminam com final feliz.
É preciso entender que a loucura, dentro dos padrões da ópera romântica, não era tratada exactamente como uma doença, mas sim como uma espécie de fuga, uma viagem para um local mental onde os espíritos sensíveis e frágeis, principalmente os femininos, submetidos à pressão dos acontecimentos externos, buscavam um refúgio que lhes permitisse repousar e proteger-se. A loucura era como uma casca, um escudo protector. É por isso que, quando a causa responsável pela loucura é removida – como nos dois exemplos citados – a personagem volta ao normal. Mas quando, como no caso da Lucia di Lammermoor, o motivo da loucura não pode ser eliminado – o casamento com Arturo é irreversível – o desfecho encaminha-se fatalmente para uma tragédia, para un fatto di sangue. Quanto ao aspecto vocal, numa nítida herança do virtuosismo barroco, os desvarios de uma mente que divaga são sempre magnificamente associados – com o tempo, tornou-se uma exigência do público – ao chamado canto fiorito, à coloratura, com todo a sua pirotecnia, desfile de voltas, gorjeios, portamentos e vocalizos arrematados por notas sobre-agudas que fazem a delícia de quem vai ao teatro.
Donizetti, presente na estreia de I Puritani, foi testemunha ocular do sucesso que a cena de Elvira obteve. Embora não exista nenhum documento escrito que o comprove, não parece ser mera coincidência a semelhança entre a maneira como as cenas de loucura de I Puritani e de Lucia di Lammermoor se desenrolam. É exactamente o mesmo esquema: o baixo canta sua única ária importante, na qual descreve o estado mental em que a jovem heroína se encontra, preparando o público para a entrada da grande – e longa – cena do soprano, que surge logo a seguir, desvairando-se em intrincadas coloraturas sob a vista estarrecida das outras personagens e do coro. É por isso legitimo pensar-se que Donizetti, arguto observador, incorporou o que havia de melhor no trabalho de Bellini, adaptando-o – com muito sucesso, diga-se de passagem – à sua Lucia. Deve ter sido ele a pedir a Cammarano para criar uma cena nestes termos. Afinal, durante os 38 dias que levaram para compor Lucia, os dois trabalharam quase sempre na mesma sala, lado a lado, embora durante muitas horas, os únicos ruídos que se ouvissem fossem o das suas penas e o farfalhar das páginas que o libretista, metódico e contínuo, ia passando para o velocíssimo compositor.
Apesar de cumprido o prazo previsto, a burocracia interna do Teatro de São Carlos acabou por obrigar a uma mudança da data para a estreia de Julho para 26 de Setembro de 1835.
A recepção – um dos maiores sucessos da carreira de Donizetti – pode ser avaliada por um excerto da carta que o autor escreveu a seu editor três dias depois da estreia:
"Permita-me que, amigavelmente, e com alguma vergonha lhe conte a verdade. [A ópera] agradou, agradou muito, se me é lícito acreditar nos aplausos e nos cumprimentos recebidos. Fui chamado ao palco muitas vezes, e o irmão de Sua Majestade Leopoldo, que assistiu e aplaudiu, fez-me os mais lisonjeiros elogios. Na segunda noite, aconteceu algo nada habitual em Nápoles: no final [do segundo ato], depois de grandes gritos de ‘viva’ ao adágio, Duprez, na maldição, obteve enormes aplausos antes da stretta.[…] A Tacchinardi [Lucia], Duprez [Edgardo], Cosselli [Enrico] e Porto [Raimondo] portaram-se muitíssimo bem, e especialmente os dois primeiros, que foram portentosos".
Até a primeira metade do século XX, costumava-se escolher para o papel de Lucia um soprano de coloratura, que entendemos como um soprano do tipo leggero com natural facilidade para o canto ornamental. Era a concepção original de Donizetti, que escreveu o papel sob medida para Fanny Tacchinardi-Persiani. Grandes Lucias foram, nessa linha, Adelina Patti, Luisa Tetrazzini, Amelita Galli-Curci, Toti dal Monte, Lily Pons e Anna Moffo, entre tantas outras. Mas com o fenómeno Maria Callas, na década de 1950, ficou muito claro que o papel não é domínio exclusivo dos sopranos de coloratura; pode ser atribuído também a sopranos com coloratura, embora de voz mais escura, mais dramática, que os italianos classificam como drammatico d’agilità. Basta lembrar que o soprano Giuseppina Strepponi, futura senhora Giuseppe Verdi, arrancou aplausos do público do Teatro Alla Scala com o papel de Lucia muito pouco tempo antes de se estrear como a extremamente dramática Abigaile no Nabucco.
Embora o soprano ocupe o papel mais importante da ópera, Lucia é sempre uma grande oportunidade para o tenor. O papel de Edgardo tornou famosos muitos tenores do passado. Ainda no século XIX, Napoleone Moriani foi cognominado de il tenore della bella morte, porque morria de uma forma bela e emocionante no final da Lucia. Como tinha nascido em Florença, foi chamado também de il cigno dell’Arno, o cisne do Rio Arno. O cisne como se sabe, canta antes de morrer. Pouco mais novo do que ele, Gaetano Fraschini viu sua fama disparar quando, em certa récita de Lucia, num procedimento que nunca mais abandonou, apurou-se no lá agudo fortíssimo que a partitura indica para o tenor na cena em que Edgardo amaldiçoa Lucia e sua família. A imprensa descreveu essa nota como "o som de um prato de prata percutido por um martelo também de prata". Foi o quanto bastou para que o público o apelidasse de il tenore della maledizione. A identificação entre Fraschini e a praga rogada por Edgardo tornou-se tão completa que, alguns anos depois, quando Verdi escolheu Fraschini como primeiro intérprete de seu Stiffelio, não hesitou em incluir uma maldição com o mesmíssimo lá, fortíssimo, para que o tenor pudesse brilhar.
Após os primeiros cinquenta anos de Lucia, o público, embora não totalmente, perdeu o entusiasmo inicial pela obra-prima de Donizetti. O público deixava-se fascinar pelas óperas de Wagner e pelo verismo. Lucia foi por isso, no início do século XX, fortemente mutilada. Muitos teatros chegaram ao exagero de adoptar como prática comum fazer cair o pano e mandar o público para casa após a cena de loucura. A grande cena final de Edgardo, aquela em que ele se apunhala ao saber da morte de Lucia, só foi restaurada depois que o tenor Enrico Caruso, com toda sua autoridade, se recusar expressamente a pisar o palco do Metropolitan de Nova York para participar de numa Lucia mutilada. Caruso, viga-mestra do teatro, foi prontamente atendido. Sorte de quem teve a oportunidade de o ouvir cantar Tombe degli avi miei e Tu che a Dio, trechos que ele nunca gravou.
Embora a maioria das óperas de Donizetti tivessem passado por uma espécie de período de hibernação no começo do século XX, Lucia di Lammermoor, ao lado de L’Elisir D’amore e de Don Pasquale, jamais desapareceu do repertório, e hoje é interpretada com frequência.
Resumo
I Acto
A ópera passa-se então na Escócia e quando começa, os homens do clã Lammermoor procuram por um estranho misterioso. Enrico Ashton, o chefe do clã, está preocupado com a perda de poder político da sua família. Enrico quer que a sua irmã Lucia case com o poderoso Lorde Arturo Bucklaw, para poder aumentar a fortuna da família. Lucia, no entanto, recusa. O seu tutor, o capelão Raimondo, diz que é porque Lucia ainda chora a morte da mãe. Mas Normanno, o capitão da guarda, diz que Lucia está apaixonada pelo inimigo político, Edgardo de Ravenswood, o que faz com que Enrico fique furioso – A ária e a cabaletta de Enrico estão compostas segundo a forma tradicional. Mas revelam desde logo a sua personalidade agressiva. Claro que é o terror que origina essa agressividade. Enrico apoderou-se do castelo de Edgardo, mas depois levou-se a si próprio e aos seus apoiantes à ruína política e financeira. Enrico está desesperado.
Na cena seguinte, vemos que Normanno estava certo. Lucia encontra-se na fonte com a sua amiga Alisa e espera por Edgardo. Lucia fala a Alisa sobre um fantasma que viu junto à fonte – uma rapariga que foi assassinada pelo seu amante ciumento. Alisa está preocupada com Lucia e pensa que ela deve desistir de Edgardo. Mas Lucia diz que Edgardo é a única alegria da sua vida. Esta é a sua primeira grande cena.
Infelizmente, Edgardo aparece e traz más notícias: tem de ir para França por causa de assuntos políticos. Edgardo quer pedir a permissão a Enrico para casar com Lucia, mas Lucia por enquanto, quer manter a sua relação em segredo. Antes de partir, Edgardo dá a Lucia um anel em sinal do seu compromisso. Agora estão juntos perante os olhos de Deus.
II Acto
No segundo acto, Enrico adiantou-se e arranjou o casamento de Lucia com Lorde Arturo Bucklaw – na realidade, Arturo e os convidados estão prestes a chegar ao castelo. O único obstáculo é a própria Lucia que continua a recusar. Lucia considera-se comprometida com Edgardo, mas o seu irmão tem um plano.
Lucia nunca mais soube de Edgardo desde que este foi para França. O que ela também não sabe é que as suas cartas têm sido interceptadas pelo seu irmão. Enrico mostra-lhe uma carta – uma falsificação, em que prova, supostamente, que Edgardo se envolveu com outra mulher.
Lucia sente-se devastada e Enrico aproveita-se disso para a enganar. Se Lucia não casar com Arturo, diz ele, ela será responsável pela ruína da família.
Quando Enrico sai, o capelão Raimondo aparece. Raimondo é muito mais moderado – encoraja Lucia a casar com Arturo, mas apenas porque ele acredita que Edgardo lhe foi infiel. Lucia finalmente cede – A abordagem de Enrico é desesperada e cruel. Mas a cena com Raimondo é crucial, porque Lucia confia nele e porque mostra de facto a manipulação – apesar de não ser intencional da parte de Raimondo – que obriga Lucia a ceder.
O facto de Lucia ceder é uma boa notícia para todo o castelo, que recebe Arturo de braços abertos. Enrico diz a Arturo que se por acaso achar Lucia um pouco triste é porque ela perdeu recentemente a mãe. Assim que Lucia assina o contracto de casamento Edgardo aparece. Quando se apercebe que Lucia se casou com outro homem, amaldiçoa-a e tira-lhe o anel do dedo. Edgardo sai e Lucia desmaia.
III Acto
No 3º acto de "Lucia di Lammermoor" os dois inimigos, o amante de Lucia, Edgardo, e o seu irmão, Enrico, encontram-se nas ruínas do castelo de Ravenswoods. Enrico atormenta Edgardo lembrando-o que Lucia e Arturo estão naquele momento a celebrar o casamento. Os dois homens decidem confrontarem-se num duelo na manhã seguinte. Na Segunda Cena, a festa do casamento é interrompida quando Raimondo chega com as notícias terríveis: Lucia enlouqueceu e apunhalou Arturo no seu quarto. De repente, Lucia aparece: o seu vestido de noiva está coberto de sangue e ela traz uma faca. É aqui que Lucia canta a famosa Cena da Loucura – O que aqui acontece é a utilização de todas as armas do bel canto. Dura cerca de 20 minutos e nesse tempo o soprano pode tecer um espectacular fascínio. E é muito comovente porque Lucia excede-se emocionalmente, ao ponto em que a única forma de se sentir segura é a fantasiar que se está a casar com Edgardo. É terrível ver Lucia tão feliz, porque nada daquilo é real.
Quando Enrico chega fica chocado com o que vê e apercebe-se finalmente do que fez. Lucia desmaia; ela perdeu a vontade de viver. Na última cena da ópera, Edgardo espera para lutar com Enrico. Raimondo encontra-o e diz-lhe que Lucia morreu. Edgardo percebe agora que Lucia nunca o deixou de amar. Desejando juntar-se a ela na morte, apunhala-se – A ária dupla de Edgardo junta uma das grandes cenas para tenor. De facto, para muitos apaixonados esta Cena do Túmulo é o ponto alto da ópera. A atmosfera é óptima: Edgardo foi até ao cemitério dos seus antepassados para morrer pelas mãos de Enrico. Depois de se apunhalar, as suas falas ficam partidas e o violoncelo enche a melodia entre as suas moribundas frases fragmentadas.