31 Dezembro 17h00
Igreja de São Roque, Lisboa
Te Deum em São Roque
Carolina Figueiredo
Marco Alves dos Santos
Tiago Matos
Jorge Matta
Marc-Antoine
Charpentier (?1645-50 – 1704) – Marche de Triomphe
–
Te Deum em Ré Maior (c. 1690)
Gravação pela Antena 2
para posterior transmissão
[em data a indicar oportunamente]
Produção: Alexandra Louro de Almeida
Coro e Orquestra Gulbenkian
Notas ao programa*
Cerca de 300 anos separam as duas composições em programa neste concerto e, pela primeira vez, o Te Deum de Fim de Ano em São Roque integrará uma obra do século XX, nomeadamente a criação do compositor estónio Arvo Pärt. Nas notas da edição discográfica da ECM, Pärt escreveu que o seu Te Deum foi iluminado por um ambiente que pudesse remeter para uma ideia de infinidade. “Tive de extrair suavemente esta música do silêncio e do vazio”, acrescentou. Te Deum é para Pärt uma demanda musical por algo que existe dentro e fora de cada um.
Arvo Pärt compôs um
Te Deum pelas “verdades imutáveis” do texto atribuído a Santo Ambrósio e Santo Agostinho que o lembram da “imensurável serenidade transmitida pelo cenário de uma montanha”. A música do compositor estoniano flui em grande parte da sua fé em Deus. O texto do Te Deum tem um papel particularmente importante na religião cristã, sobretudo na Igreja Ortodoxa de Leste, à qual Arvo Pärt se converteu, tornando-se numa grande influência no seu processo criativo.
Arvo Pärt é reconhecido como um dos compositores de vanguarda dos séculos XX e XXI e as suas obras têm sido bem recebidas por intérpretes e público, embora não unanimemente pela crítica. Ingressou no conservatório de Tallinn, a sua terra natal, em 1953, mas a sua formação foi interrompida pelo serviço militar entre 1954-56, onde por ser músico, foi escolhido para tocar na orquestra do regimento, o que tornou esses anos mais suportáveis. De regresso ao conservatório, estudou composição com Heino Eller, conhecido por preservar a individualidade de cada aluno, numa época em que não eram bem vistos os que se interessavam pelas técnicas ocidentais. Após um período de exploração das vanguardas dos anos 60, em que utilizou técnicas seriais que lhe mereceram algum respeito no ocidente mas uma ostracização pelas autoridades soviéticas da Estónia comunista, remeteu-se ao silêncio. Depois da estreia de Credo (1968), uma obra de extremos musicais que lhe valeu algumas retaliações e onde chegou a um impasse criativo, Pärt obrigou-se a um exílio composicional onde se dedicou ao estudo do canto gregoriano e da polifonia francesa e franco-flamenga dos séculos XIV a XVII, desde Machaut a Josquin des Prés e Ockeghem. Regressou em meados dos anos 70 com uma técnica muito própria denominada tintinnabuli, numa referência ao som produzido pelo tocar dos sinos. Uma das mais importantes influências neste ponto de viragem foi a descoberta do canto gregoriano, que descreve como “um mundo sem harmonia, sem métrica, sem timbre, sem instrumentação, sem nada”. Pärt caracterizou a sua nova linguagem como “um voo em direcção a uma pobreza involuntária”. O resultado é uma harmonia neotonal, baseada na tríade, onde as vozes se movem dentro e fora da dissonância e que cria no ouvinte uma sensação de tranquilidade, quase hipnose. Nesta nova fase preferiu os textos cristãos, bem como os grupos vocais em detrimento da orquestra.
Sobre o Te Deum, Arvo Pärt diz que procurou um ambiente “que pudesse ser infinito no tempo, removendo delicadamente uma peça – uma partícula de tempo – do fluxo da infinidade. Eu tinha que desenhar esta música gentilmente a partir do silêncio e do vazio”. A obra é para três coros (feminino, masculino e misto) piano preparado e de preferência amplificado, orquestra de cordas e harpa de vento, cujo som foi previamente gravado em fita magnética e processado acusticamente. Tem 29 secções, correspondentes ao número de versos do texto e assenta numa alternância entre melodias ao estilo gregoriano a uma ou duas vozes, polifonia coral e interlúdios instrumentais. Os contornos melódicos estão estritamente ligados aos ritmos do texto também por influência da liturgia da igreja ortodoxa russa que valoriza o discurso falado e a expressão verbal. A harpa de vento é semelhante à harpa eólica da Grécia Antiga, cujas cordas vibravam devido à passagem do vento. Tem uma função idêntica à de um ison do canto bizantino, uma nota pedal (neste caso uma alternância entre Ré e Lá) que não muda de afinação, que confere unidade à obra e representa uma força espiritual omnipresente. Sendo que a “música vem do silêncio, ao qual, mais tarde ou mais cedo deve regressar”, o silêncio é um elemento integrante e essencial da partitura.
Embora no reinado de Luís XIV a vida musical da corte francesa fosse dominada por Jean-Baptiste Lully, italiano que soube adaptar-se ao gosto francês, também Marc-Antoine Charpentier teve um papel preponderante, sobretudo no âmbito da música religiosa. O seu repertório consiste maioritariamente em obras vocais, nas quais se contam motetes, oratórias, missas e cantatas. Nascido em 1643 nos arredores de Paris, filho de um “maître écrivant” (copista), Charpentier partiu para Itália com cerca de 21 anos. Em Roma estudou com Carissimi, pai da oratória latina, e absorveu o estilo italiano das histórias sacras e dos motetes religiosos. Trabalhou para a mecenas Mademoiselle de Guise, prima de Luís XIV, e em 1688 tornou-se mestre de música da Igreja Jesuíta de São Luís. Escreveu várias obras de caráter religioso, incluindo histoires sacrées e vários Te Deum.
Destes, o mais conhecido é o Te Deum em Ré maior (H. 416), possivelmente apresentado na celebração da vitória na batalha de Steinkirk em 1692. Charpentier escolheu a tonalidade de Ré maior por ser, nas suas palavras, “brilhante e muito guerreira”. É uma obra em oito andamentos, escrita à maneira de um grande motete cerimonioso, com alternância entre secções soli e tutti. O Te Deum utiliza coro e solistas e um efetivo instrumental mais alargado do que o habitual na época, embora a escrita vocal e instrumental seja essencialmente a quatro partes, com as flautas (transversais ou de bisel) a dobrar os violinos. Os trompetes e timbales, instrumentos reais, são utlizados na abertura numa tendência implementada por Lully, mas também noutros momentos importantes em termos textuais, como na referência ao juízo final na frase solista do baixo “Judex crederis esse venturus”. Da mesma forma, as madeiras ilustram momentos de contemplação e as flautas evocam a morte como na ária de soprano “Te ergo quae sumus”. Um dos traços mais importantes de Charpentier era a sua capacidade de extrair e destacar o conteúdo dramático dos textos litúrgicos sugerido pelos versos, teatralizando-os com o intuito vezes de os explicar, de os fazer entender. Apesar do texto do Te Deum não ser particularmente rico em nuances e oposições de caráter, como o são por exemplo, os salmos, Charpentier consegue através dos contrastes de textura e de instrumentação demonstrar o seu ideal estético: “a grande diversidade da música… a verdadeira diversidade é o que cria a perfeição”.
*Notas de Susana Duarte / FCG