Para celebrar o Dia Mundial da Poesia, a Antena 2 dá continuidade ao projeto do ano transato, propondo sempre dar mais Poesia às nossas Vidas. Durante o dia 21 de Março, uma emissão especial comemora esta data com pequenos apontamentos poéticos junto às horas certas, ao longo de toda a jornada.
Os poemas foram escolhidos por membros e colaboradores da Antena 2 num critério pessoal, e quase todos partilharam também a sua leitura/interpretação que pode escutar clicando nos links junto dos poemas. Em baixo pode aceder aos poemas na sua forma escrita.
A Antena escolhe um poema…
IX – Sou um guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro
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A escolha de Ana Paula Ferreira
Precisão, de Clarice Lispector
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A escolha de André Pinto
Ode à Música, de David Mourão Ferreira
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A escolha de André Cunha Leal
Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes
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A escolha de Andrea Lupi
Travessia da infância, de José Tolentino Mendonça
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A escolha de António Costa Santos
A Um Corpo, de David Mourão-Ferreira
A escolha de Cristina Cardinal Ferreira
Poema da Morte na Estrada, de António Gedeão
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A escolha de Inês Almeida
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A escolha de Inês N. Lourenço
A qualquer leitor, de Robert Louis Stevenson
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A escolha de João Monteverde
I Dreamed I Saw St. Augustine / Sonhei que vi St. Agostinho, de Bob Dylan
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Alma a Sangrar, de Florbela Espanca
A escolha de Luís Caetano
Transatlântico [1991], de Iosif Brodskii
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A escolha de Luísa Duarte Santos
Os Olhos do Poeta, de Manuel da Fonseca
A escolha de Maria Alexandra Corvela
E por Vezes, de David Mourão-Ferreira (lida pelo autor)
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IX – Sou um guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro
In Poemas de Alberto Caeiro [Fernando Pessoa]
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
A escolha de Ana Paula Ferreira
Precisão, de Clarice Lispector
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
A escolha de André Pinto
Ode à Música, de David Mourão Ferreira
In Obra Poética 1948-1988
É como se tivesses mãos ou garras
milhões de dedos braços infinitos
É como se tivesses também asas
libertas do minério dos sentidos
É como se nos píncaros pairasses
quando nas nossas veias é que vives
É como se te abrisses – ó terraço
rodeado de abutres e raízes –
sobre o perene pânico dos astros
sobre a constante insónia dos abismos
E é como se te abrisses e fechasses
sobre a antepalavra do Espírito
É como se morresses quando nasces
É como se nascesses quando expiras
A escolha de André Cunha Leal
Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
A escolha de Andrea Lupi
Travessia da infância, de José Tolentino Mendonça
In A noite abre meus olhos – Poesia reunida
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas
lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo
não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias
só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo
mas isso foi depois
muito depois
repito
A escolha de António Costa Santos
A Um Corpo, de David Mourão-Ferreira
IV
A vestir-te
o corpo
nu
ou a sede
que é minha
ou a seda
que és tu
A escolha de Cristina Cardinal Ferreira
Poema da Morte na Estrada, de António Gedeão
In Linhas de Força
Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.
A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.
Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.
Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.
Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.
Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.
A escolha de Inês Almeida
Era um redondo vocábulo, de José Afonso
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
‘Inda o ar educa.
A escolha de Inês N. Lourenço
A qualquer leitor, de Robert Louis Stevenson (Trad. José Agostinho Baptista)
Se detiveres os teus passos
E te sentares num banco do jardim
Com todo o céu azul de Maio;
Ou se repousares no teu sofá
Sem ninguém perto de ti,
Ocupa-te docemente:
Toma este volume nas tuas mãos
E viaja até outras terras,
E (como uma criança que finge) imagina-te
A caçar nos confins desse jardim,
Ou no sótão atravancado, ou
Na cave – com uma porta escura
Cuja escada conduz
Aos reinos das profundidades.
Aí, escutarás
O canto dos estranhos pássaros, ou as árvores
Que se movem nos grandes bosques dos ladrões,
Ou os sinos de muitas belas cidades:
Para lá dessas portas (um passo ou outro
Que nem a mamã nem a nurse devem saber!)
Do teu quarto encantador de menino passarás
Como Alice através do Espelho
Ou como Gerda perseguindo a Pequena Kay
Aos longínquos e admiráveis países.
É uma maravilha este livro, ele
Pode levar cada donzela, cada homem,
De repente, até às remotas paragens
Onde outros meninos brincam.
Como a tua mãe que em sua casa te vê
A brincar à volta das árvores do jardim,
Assim verás, se olhares
Através das janelas deste livro,
Outro menino, longe, muito longe,
A brincar noutro jardim.
Mas não penses que podes, de qualquer maneira,
Com uma mera pancada na janela, pedir
A esse menino que te oiça. Ele só quer
Brincar, nada mais.
Está absorto e não te ouve, não olhará para ti,
Ele vive apenas para este livro.
Há muito tempo, diga-se a verdade,
Que cresceu e se foi embora;
Ele é somente uma criança do ar
Que passa o tempo no jardim.
A escolha de João Monteverde
I Dreamed I Saw St. Augustine / Sonhei que vi St. Agostinho, de Bob Dylan
I dreamed I saw St. Augustine
Alive as you or me
Tearing through these quarters
In the utmost misery
With a blanket underneath his arm
And a coat of solid gold
Searching for the very souls
Whom already have been sold
Arise, arise, he cried so loud
In a voice without restraint
Come out, ye gifted kings and queens
And hear my sad complaint
No martyr is among ye now
Whom you can call your own
So go on your way accordingly
But know you’re not alone
I dreamed I saw St. Augustine
Alive with fiery breath
And I dreamed I was amongst the ones
That put him out to death
Oh, I awoke in anger
So alone and terrified
I put my fingers against the glass
And bowed my head and cried
(trad. João Monteverde)
Sonhei que vi St. Agostinho,
Vivo como tu e eu,
Perecendo por entre estes quarteirões
Na extrema miséria,
Com um cobertor debaixo do braço.
E um casaco de ouro maciço,
À procura das muitas almas
Que já foram vendidas.
"Levantem-se,levantem-se", gritou ele tão alto,
Sem comedimento na voz,
"Saiam daí, ó abençoados reis e rainhas
E oiçam a minha triste reclamação.
Entre vós não há nenhum mártir
A que possam chamar um dos vossos,
Por isso,sigam o vosso próprio caminho
Mas saibam que não estão sós."
Sonhei que vi St. Agostinho,
Vivo com a respiração ardente,
Sonhei que eu estava entre os escolhidos,
Que o ampararam até à morte.
Ah, acordei com raiva.
Então,tão só e apavorado,
Coloquei os meus dedos contra o vidro,
Inclinei a minha cabeça e chorei.
A escolha de Jorge Carmona
Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?
Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?
Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?
Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?!…
A escolha de Luís Caetano
Transatlântico [1991], de Iosif Brodskii
In Paisagem com Inundação (trad. Carlos Leite), ed. Cotovia, 2001
Os últimos vinte anos foram bons praticamente para toda a gente
menos para os mortos. Mas talvez também para eles.
Talvez o Todo-Poderoso-em-Pessoa se tenha tornado um tanto burguês
e use cartão de crédito. Pois doutra maneira a passagem do tempo
não faz sentido. Daí as recordações, as memórias,
os valores, as maneiras de sociedade. Esperamos não termos
gasto a mãe ou o pai ou ambos, ou uma mão cheia de amigos até ao
último, pelo facto de deixarem de nos povoar os sonhos. Os sonhos,
ao contrário da cidade, despovoam-se
à medida que envelhecemos. Por isso é que o eterno descanso
oblitera a análise. Os últimos vinte anos foram bons
praticamente para toda a gente e constituíram
a vida no outro mundo para os mortos. A qualidade dessa vida podia ser
questionada mas não a duração. Os mortos, supõe-se, não se
importariam de conseguir o estatuto de sem-abrigo e dormir em passagens
pedonais, ou de ficar a ver os submarinos grávidos regressarem
ao curral onde nasceram no fim duma viagem à volta do mundo
sem destruírem vida na terra, sem terem
sequer um pavilhão decente para içarem.
A escolha de Luísa Duarte Santos
Os Olhos do Poeta, de Manuel da Fonseca
In Rosa dos Ventos (1940)
O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos de fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas prò mar amaldiçoando a tempestade:
todas as cores, todas as formas do mundo se agitam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.
A escolha de Maria Alexandra Corvela
E por Vezes, de David Mourão-Ferreira (lida pelo autor)
In Matura Idade
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
A escolha de Pedro Coelho
No Way Back, de José Miguel Silva
In Walkmen
"Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se descobre ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tcheckov "pela viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria,
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem "pelo jardim das Belas-Artes".
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa".
A escolha de Pedro Rafael Costa
Eu, de Álvaro de Campos
Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu…
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…
Que crianças não sei…
Eu…
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei…
Eu…
Tive um passado? Sem dúvida…
Tenho um presente? Sem dúvida…
Terei um futuro? Sem dúvida…
A vida que pare de aqui a pouco…
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…
A escolha de Reinaldo Francisco
Amo-te sem saber como, de Pablo Neruda
In Cem Sonetos de Amor
Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.
Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.
Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,
a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.