Não digas a ninguém
É difícil tirar de cima o corpo de um morto. Descobri-o aos doze anos, com o sangue a escorrer-me do nariz e da boca e as cuecas enroladas à volta de um tornozelo. (…)
Mal me libertei daquele peso, virei-me de lado, cuspi saliva vermelha para o meio dos seixos, esfreguei os lábios e as narinas com os dedos para apagar o seu cheiro. Por um instante faltou-me o ar, depois encolhi as pernas e tentei respirar. As cuecas tinham o elástico rompido, o tecido rasgado, furado pelo calcanhar. Escoiceei com raiva para as desenfiar e tapei-me com a saia, que se tinha arrepanhado acima do umbigo. Tinha o ventre frio e tudo me doía.
Maddalena levantou-se, limpou-se da lama esfregando as palmas das mãos nas coxas.
– Estás bem? – perguntou.
Mordi o lábio e anuí. Na minha garganta havia um dique prestes a ceder. Mas não chorei. Fora ela quem mo ensinara. Chorar era para os idiotas.
O romance de estreia de Beatrice Salvioni, A Malnascida, recentemente editado pela Alfaguara, e com tradução de Ana Cláudia Santos, é a razão para a conversa de Luís Caetano com escritora italiana que decorreu em Óbidos, no Folio.
Este primeiro romance da jovem autora italiana conquistou leitores e reconhecimento da crítica em mais de 30 países onde está publicado.
Este livro recua a uma Itália fascista, em 1936, onde duas raparigas lutam contra a imposição da vergonha do próprio corpo e do medo de viver livremente.
Monza, Itália, 1936. Francesca, de 13 anos, está nas margens do rio Lambro, vergada sob o peso de um homem morto que tentou violá-la. Maddalena, amiga de Francesca, sai da água e ajuda-a a livrar-se do corpo: escondem-no no meio de arbustos. Este momento é um marco inolvidável na relação entre as duas raparigas, que começa um ano antes, quando Francesca se deixa fascinar por aquela a quem todos chamam «a Malnascida»: uma rebelde de origens humildes e com estranhos poderes. Contrariando a vontade da sua mãe, obcecada pelas convenções sociais burguesas, e ignorando os rumores que atribuem várias mortes à «Malnascida», Francesca junta-se ao seu bando de amigos «problemáticos», ávida por descobrir um modo de vida em absoluta liberdade. Entre as duas amigas, contudo, imiscui-se a guerra e o fascismo. Francesca e Maddalena terão de fazer uma difícil escolha: aliar-se contra a opressão social e a injustiça, ou deixar que o curso da História as separe para sempre.
Beatrice Salvioni nasceu em Monza, Itália, em 1995. Formou-se em Filologia Moderna pela Universidade Católica de Milão. Foi aluna da Scuola Holden, dirigida por Alessandro Baricco, e ganhou o Prémio Calvino 2021, com o conto Il volo notturno delle lingue mozzate, bem como o Prémio Raduga 2021.
A Malnascida é o seu primeiro romance, com o qual obteve o Prémio Scuola Holden e cujos direitos foram vendidos a trinta e dois editores antes da publicação em italiano. Será adaptado a série televisiva.
Fotos Jorge Carmona / Antena 2