A Antena escolhe um poema….
Os poemas foram escolhidos por membros e colaboradores da Antena 2 num critério pessoal, e muitos partilharam também a sua leitura/interpretação que pode escutar clicando nos links; logo abaixo pode aceder aos poemas na sua forma escrita.
Herberto Helder – "O Poema – I", in Colher na Boca (1961), ed. Ática
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
A escolha de Ana Paula Ferreira…
Konstandinos Kavafis – "A Cidade", in Os Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis) Ed. Relógio D’Água
Disseste; "Vou partir para outra terra, vou partir para outro mar.
Uma outra cidade melhor do que esta encontrar-se-á.
Cada esforço meu um malogro escrito está;
e é – como morto – enterrado o meu coração.
A minha mente até quando irá ficar nesta estagnação.
Para onde quer que eu olhe, para onde quer que eu fite por aí
ruínas negras da minha vida vejo aqui,
onde tantos anos passei e dizimei e dei em estragar".
Lugares novos não vais encontrar, não encontrará outros mares.
A cidade seguir-te-á. De volta pelos caminhos errarás
os mesmos. E nos bairros os mesmos envelhecerás;
e dentro destas mesmas casas cobrir-te-ás de cãs.
Sempre a esta cidade chegarás. Para os noutra parte – esperanças vãs –
não há barco para ti, não há partida.
Assim como dizimaste aqui tua vida
neste pequeno recanto, em toda a terra a vi estragares.
Pedro Tamen – "Vou a Praga à boleia, meu amor", in AGORA, ESTAR (1975)
Vou a Praga à boleia, meu amor,
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Tu tens um medo
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Daniel Jonas – "Trabalho e trabalho", in Os Fantasmas Inquilinos (2005), Livros Cotovia
para dar à luz um pai
na minha solidão de depauperado
arado que nada sulca
porque como um comboio a que faltaram carris
prévios ao meu arado são seus sulcos.
Sou um filho circular. Como um signo
zodiacal sou um filho circular, requer o que faço
aquilo em que me movo
que é aquilo em que me movo
o que faço e como fazê-lo
se não tenho já em que me mova? O que faço
é o que me fez.
Sou comboio e arado e um rodado
sem discos. Sem paralelo em círculos
rotunda tristeza propago
de vertiginosa incubação de vórtices
que ajudo a solidificar: outra vez a sólida
solidão: é fácil a primeira imagem do comboio:
insta à compaixão. E são pesados os bois
circulares que o meu arado
entontece, em vão o rodado
sem discos. Quanto pesarão
bois entontecidos? Como ser pai
quando se é filho?
A escolha de Inês N. Lourenço…
José Tolentino Mendonça – "Patti Smith explica o Cântico dos Cânticos", in Estação Central, Assírio e Alvim
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Patti Smith explica o Cântico dos Cânticos
Deitamo-nos juntos na noite ilegal
trespassados por faíscas de prata
Talvez fôssemos sem saber nessa hora
a senha aguardada por mundos futuros
Talvez desvendássemos um centro para as rosas
e agora é de lá que partem os comboios
a decidir o curso dos impérios
Pouco importa que tenha chegado a aurora
aos bares que cumprem horário nocturno
e o cheiro dos desinfectantes mostre
como se apagam
os vestígios do amor
A escolha de João Chambers…
Nuno Fernandes Torneol – "Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias". Contrafacta, ou adaptação de novas versões literárias a repertório sacro ou profano preexistente, da Cantiga de Santa Maria 340 de Afonso X
Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias,
leda m’and’eu.
Tôdalas aves do mundo d’amor diziam,
Do meu amor e do voss[o] en ment’haviam,
Vós lhi tolhestes os ramos em que siíam,
Vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam,
A “alba”, ou “alva”, é uma forma fixa poética proveniente de textos medievais portugueses e castelhanos bastante associados às “Cantigas de Amigo”. O tema que a caracteriza reduz-se ao simples diálogo entre amantes que lamentam a chegada de um novo dia, em virtude de este interromper uma longa e, por certo, arrebatadora noite de amor não poucas vezes iniciática e, inclusive, adúltera. O casal é avisado do alvorecer quer pelo canto de uma ave, um galo ou uma cotovia, quer pelo murmúrio de um velador que assegurava não serem descobertos por maridos enciumados. A respectiva designação decorre da palavra “alba” que, por vezes, figura no começo e outras no fim de cada estrofe, estabelecendo assim um refrão. Os modelos métricos e temáticos deste tipo de poesia, que teve início em terras gaulesas, passaram, rápida e sucessivamente, para o repertório das penínsulas Itálica e Ibérica, para o outro lado da Mancha, onde adoptaram a designação Dawn song, ou “Canção da alvorada”, e para os países de língua germânica, aí designados Tageslied, ou “Cantiga do nascer do dia”.
A alba conheceu, de maneira esporádica, a tradição da poesia galego-portuguesa, tendo remanescido, apenas, uma que em muito se aproxima deste género e constitui uma das mais belas e elaboradas cantigas de amigo daquele repertório: a do trovador Nuno Fernandes Torneol, o qual, em meados do século XII, terá desenvolvido a sua actividade na corte castelhana de Fernando III ou Afonso X. O poema narra o despertar dos amantes, em cenário idílico e bucólico, ao som do canto dos pássaros, a par da descrição da estranha alegria da jovem mantida ao longo do poema através do refrão leda m’and’eu, o que pode indiciar uma temporária separação de ambos.
A escolha de João Monteverde…
Eugénio de Andrade – "Pequena Elegia de Setembro"
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Pequena Elegia de Setembro
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
José Régio – "Cântico Negro", in Poemas de Deus e do Diabo
Cântico Negro
"Vem por aqui" – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
Alberto da Costa e Silva – "Poema de avô", in Poemas reunidos (2012) Rio de Janeiro: Nova Fronteira
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Poema de avô
Se te disserem, "vê, a vida é breve",
ao falarem de mim, no meu descanso,
repara ao teu redor, vê como pára
em cada coisa o tempo e se faz leve.
Vou sob o sol desta manhã de março,
e eis o musgo, e eis o risco que no muro
pôs no meu teu olhar limpo de enganos.
Ou pus no teu o meu, o antigo e puro.
Que não te deixe a distração da brisa
pensar que já não és este minuto.
Cada instante que fomos sempre somos
e canta, ainda que pareça mudo.
Mário Quintana – "Degraus"
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Os Degraus
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo…
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem.
Suzanne Vega – "Luka" (trad. livre)
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Moro no 2º andar
Por cima de ti
Acho que já me deves ter visto
Se ouvires algo de estranho durante a noite
Uns barulhos
Umas discussões
Não me perguntes o que foi
Acho que é porque sou desastrado
Tento não falar muito alto
Talvez seja porque sou desequilibrado
Tento não ser muito orgulhoso
Só batem até começares a chorar
Depois disso… não perguntas porquê
Apenas não discutes mais
Apenas não discutes mais
Sim, acho que estou bem
Fui de encontro à porta novamente
Se perguntares é o que vou responder
De qualquer modo não tens nada a ver com isso
Gosto de estar sozinho
Sem nada partido
Sem nada atirado
Apenas não me perguntes como estou
Apenas não me perguntes como estou
* A transmissão dos poemas inicia-se por volta das 10h00. Como este ano, no Dia da Poesia a Antena 2 celebra também o Dia Europeu da Música Antiga, há uma ou outra passagem de hora em que não é possível emitir um poema.