Maria Beatriz (1940-2020)
Maria Beatriz teve um percurso artístico relativamente afastado dos círculos artísticos portugueses, não apenas por viver na Holanda desde há décadas, mas também pela sua personalidade discreta; outros fatores terão contribuído decerto para ter estado, em grande medida, arredada de um circuito mais comercial, ou por ter uma esparsa presença nalgumas das grandes instituições artísticas portuguesas, excepção à Casa da Cerca, onde foram realizadas duas exposições antológicas da obra da artista.
Nascida em 1940, em Lisboa, Maria Beatriz vai dedicar-se às artes plásticas após uma inicial e breve incursão pelo curso de Biologia. Opta então pelo curso de Pintura na Escola de Belas Artes que também cedo abandona devido à crise académica de 1961-62. Após uma estadia em Londres, em 1962-63, começa a ter lições de desenho com Alice Jorge que a leva para a Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, onde estavam, e passaram, alguns dos mais importantes artistas da época. Começa então a experimentar as técnicas de gravura em metal; é lá que encontra o gravador inglês Stanley William Hayter, fundador do célebre Atelier 17, estúdio de gravação em Paris, que tinha vindo a Lisboa dar um seminário sobre esta técnica artística. Em 1965, é-lhe atribuído o 1º prémio em Pintura na Exposição de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes, e no ano seguinte vai para Paris, como bolseira da Fundação Gulbenkian, onde retoma os estudos com S. W. Hayter, no Atelier 17, durante dois anos. Os anos na capial francesa foram tempos de aprendizagem artística e de crescimento cultural, mas também político e cívico.
A exposição Trabalhos de Casa (1960-2013), de caráter antológico como o título indica, leva-nos a conhecer, retrospetivamente – literal e museograficamente – o percurso por algumas das séries de trabalhos que Maria Beatriz realizou desde os anos 60 até à sua produção recente.
No piso do rés-do-chão do espaço expositivo da Casa da Cerca, duas séries, uma de 1990-1992 e a outra de 2010-11, assinalam o início da visita; obras escolhidas pela sua temática comum, a infância, e também por se adequarem a um espaço usualmente utilizado para atividades do serviço educativo com crianças.
Brinquemos à guerra é uma obra de dupla significação; se a sua quase singela aparência remete de imediato para um universo infantil, em que crianças brincam, e brincam como ainda tantas com brinquedos bélicos, a data em que foi feita a obra, esclarece-nos quanto à origem, e alcance, desta obra: a guerra dos balcãs.
No piso superior da Casa da Cerca, três outros espaços são ocupados por vários momenos do percurso artístico de Maria Beatriz. Num primeiro, uma grande sala, ilumina-se e ilumina-nos para grandes obras, na sua dimensão física mas sobretudo na dimensão estética desta artista.
A série "Os Comedores de batatas" tendo como ponto de partida a obra homónima de Van Gogh, e já mostrada, em 2012, numa exposição do Museu da Eletricidade, resulta de um seu interesse, antigo, por esta obra do pintor holandês. Decide visitar então Nuenem, pequena cidade neerlandesa onde tinha morado o pintor e onde realizou inúmeras obras sobre a vida de camponeses, tecelões e outros trabalhadores, retratando a miséria e a desesperança da gente humilde dessa região mineira.
Maria Beatriz quis conhecer essa zona onde tinha vivido o pintor, mas também sentir a sua realidade atual; é dessa visita que surge esta série: "Desde que as minas fecharam, o desemprego é grande e a precariedade em que vive a maioria da população salta aos olhos. Passei lá um domingo", conta em entrevista à curadora Emília Ferreira, e viu "muitas famílias a comer batatas fritas" (p. 15), alimento barato e acesssível aos menos afortunados.
Maria Beatriz recolhe e celebra assim o "ensinamento" de Van Gogh que quis "dar a ver a vida dos desmunidos. (…) mostrar-se do lado deles", e também ela, fá-lo aliando "em grande liberdade de expressão, a procura pictórica à crítica social implícita" (p. 14).
Mas outras obras de Maria Beatriz ocupam este espaço da Casa da Cerca; obras de Desenho – ou de desenhos pintados? ou de pinturas desenhadas? – como prefere designar, já que o desenho é a base da pintura, e no qual se sente livre para fazer e refazer, apagar e rasgar, recortar e recolar; alguns trabalhos da série "Oisive jeunesse, à tout asservie…", inspirada no poema de A. Rimbaud, três obras em azulejo, e uma outra, originalíssima, da série "Vermelho", desenhada e bordada, e como os bordados quase delimitada por um bastidor.
A ‘mesa’ sentida pela artista como lugar basilar de partilha, de lugar de presença / ausência, de histórias contadas e de silêncios, lugar familiar e de centralidade feminina, onde o ato de alimentar é fim e meio dos afetos (ver também texto de José Manuel dos Santos, no catálogo, p. 78-81)
"As minhas linhas adquirem uma presença física que preciso sentir. Daí a colagem." (Maria Beatriz)
A última sala é dedicada à gravura. Dos anos 60, com gravuras em metal que "espelham o ambiente que vivíamos durante o fascismo" (p. 13), aos anos de 1973-74, experimentando outras técnicas da gravura, como a serigrafia e a litografia, com algumas referenciações à História da Arte renascentista e flamenga.
É na Galeria Ratton que encontramos Maria Beatriz e os seus últimos trabalhos, numa mostra intitulada Calendário, numa significação de trabalho diário, um quase programa que se auto-impõe e de que desfruta, ultrapassando as vicissitudes de uma saúde já com algumas fragilidades.
Neste Calendário que se inicia em 2015, Maria Beatriz ao mesmo tempo renova e retoma algumas das suas constantes. Em primeiro lugar, uma ode ao feminino, cruzando a sua recorrente inspiração poética – Contra el agua, días de fuego. / Contra el fuego, días de agua(Octavio Paz) -, com as múltiplas formas e metamorfoses do ser mulher.
O vermelho, cor de mulher, cor de sangue, de dor e de vida, para a vida; fundo ou forma, recortada ou ausente, nos lábios ou nos cabelos, delimitando rotundas nuas formas alvas – "uma idade branca veste os seus corpos e um voo de vespas atordoadas de primavera salpica-as de pétalas sujas como os corais cinzelados num recife de naufrágio" (Nuno Júdice, p. 26) -, manchando olhares, apagando sorrisos, ocultando faces, sonegando-nos a própria face – ver auto-retratos, assim identificados no local pela artista, nas páginas 36 e 43, da 2ª parte do catálogo).
O vermelho – cor de Maria Beatriz – cor de sentimento, de inquietação, de revolução; cor da carne, do corpo sem pele – interior revelação -; cor de poder e de violência, contida, pela brancura, pelo vazio dos espaços, pelo raspar e rasgar das linhas – "Restam as paredes, as fendas em que a mão se desloca rompendo o gesso de uma ternura de cal" (Nuno Júdice, p. 34, idem).
O recortar de Maria Beatriz torna-se nalguns destes seus trabalhos, um rasgar, que de tão meticuloso – como aliás todas as intervenções pictóricas dos fundos nas suas obras – nos parece espontaneamente orgânico, e nunca decorativo.
Se, em trabalhos anteriores, o cortar e recortar tinha sobretudo um propósito de composição e recomposição de elementos, de reorganização do espaço e do mundo que constrói, nesta série Calendário assume-se em estruturação das próprias formas e das cores, nas figuras que acolhem essa solução.
E nesse trabalho de reinvenção da figura, Maria Beatriz leva a depuração ao limite, retirando a figura dos fundos, esvaziando-a do que lhe é exterior, individualizando-a, quebrando-lhe o elo de sustentação com um real, tornando, não abstrato, mas ausente um qualquer enquadramento, como se as figuras vogassem num território sem matéria, de sombras.
Nesta exposição, ainda têm lugar – até porque a Galeria Ratton é, e tem sido, um desses lugares – o azulejo. Técnica com a qual Maria Beatriz em uma "relação antiga", e cujo resultado final se oculta temporariamente, como a fotografia e a gravura, para se revelar no fim do processo; assim, nunca se sabe "ao certo o que vai sair do forno", e é "dessa incerteza, dessa espera" que se faz o gosto da artista por este meio (p. 16, da 1ª parte do catálogo).