Até sempre, Pierre!
Pedro Amaral evoca o legado de Pierre Boulez
8, 15, 22 e 29 Maio 13h00
13, 20, 27 Maio e 3 Junho 17h00 (repetição)
[No imaginário coletivo, Picasso é o equivalente, por excelência, à arte moderna. Do mesmo modo, Pierre Boulez é o emblema da música contemporânea, para o melhor ou para o pior. O pior situa-se em torno da ideia da ruptura. Boulez foi o responsável pela rejeitação de séculos de tradição e quis fundar uma arte recusando fundamentos tão naturais como a melodia ou a harmonia aos quais o melómano se agarra. Este julgamento não vem somente do “público em geral” que não se reconhece nas aventuras musicais do século XX e atrás do qual é fácil acomodar-se, mas foi também perseverante e veementemente moldada por muitos comentadores que, de uma vez por todas, definiram Boulez como o compositor do serialismo integral, fazendo tábua rasa da nossa herança estilística para instalar uma aridez que pretendeu ser, ela própria, fonte de uma nova seiva.]
Laurent Bayle, presidente da Philharmonie de Paris, no jornal Le Monde.
Mozart – Concerto para piano nº 20
Maria João Pires (piano), Pierre Boulez (maestro), Orquestra Filarmónica de Berlim, 2003
Boulez nasceu em Montbrison, entre guerras, em Março de 1925. Em jovem, anteviu duas vias possíveis para o seu futuro profissional: a música e as ciências exactas. Como todas as grandes escolhas que iriam marcar a sua vida, também esta, inicial, foi rápida e definitiva: “desde os dezassete anos que me vi mestre do meu destino, mestre, pelo menos, da minha escolha de assumir a música como função principal da minha existência” [1].
Ao contrário da maior parte dos músicos, no entanto, esta escolha viria a desdobrar-se numa pluralidade de caminhos, numa multiplicidade de facetas tão diversas quanto complementares: compositor, foi um dos mais determinantes da segunda metade do século XX; teórico, deixou-nos os mais importantes escritos sobre estética e técnica musical desde o pós-Segunda Grande Guerra; maestro, reinterpretou todo o legado da primeira metade do século XX e de uma parte do romantismo germânico, frente às mais importantes orquestras mundiais; organizador, criou instituições que alteraram profundamente o panorama musical contemporâneo a nível internacional.
Como compositor, a preocupação fundamental de Boulez nos seus primeiros anos foi, justamente, compreender o seu passado próximo, filtrar influências, criar uma genealogia, inventar uma história de que fosse herdeiro e que, de certo modo, justificasse a sua própria obra.
Não foi tarefa fácil: o seu passado próximo era extraordinariamente plural e heterogéneo, de uma riqueza quase única em toda a história da música – esquecemo-nos facilmente de que escassos 14 anos separam a morte de Mahler do nascimento de Boulez, e que quase todos os grandes vultos da primeira metade do século XX – Stravinsky, Bartók, Schönberg, Webern, Varèse, Messiaen – estavam ainda em plena actividade quando Boulez escreveu as suas primeiras obras (Notations: 1945, Sonatina para flauta e piano, Primeira Sonata e Le visage nuptial: 1946). Que via seguir, no seio deste labirinto de convergências e divergências, nesta encruzilhada de personalidades e de percursos, de espólios, de obras mais ou menos cataclísmicas, mais ou menos condicionantes? O génio de Boulez foi o de conseguir uma síntese “cartesiana”, guiada por uma dúvida metódica, do que lhe parecia essencial no seu passado próximo: a Stravinsky vai buscar o pensamento rítmico, a Schönberg a dimensão harmónica liberta da tonalidade, a Webern a sintaxe dodecafónica, a Debussy a raiz de uma reinvenção da forma e do timbre. “A existência cria a essência”, escreverá num famoso artigo de juventude [2]. E é partindo desta leitura da história, como dado existencial, que irá fundar a sua linguagem – o “serialismo” – e a sua obra como compositor.
Obra que irá atravessar paisagens muito diversas. As primeiras três décadas serão profundamente marcadas pela presença da poesia: de René Char em Le Visage nuptial (1946), Le Soleil des eaux (1948) e Le Marteau sans maître (1954); de Stéphane Mallarmé em Pli selon Pli (1957-62) mas desde logo na própria concepção da Terceira Sonata para Piano (1957); e de E. E. Cummings em Cummings ist der Dichter (1970). A dimensão poética será, aliás, a única base concreta, extra musical, numa obra praticamente fundada naquilo a que se chama “música pura”, onde a especulação da escrita e da arquitectónica musical, elevada ao seu expoente máximo, se torna uma finalidade em si mesma.
Para piano, instrumento de aprendizagem que marcou a sua juventude, Boulez deixa um conjunto de três Sonatas (1946, 1948, 1957) e diversas pequenas peças; multiplicando as possibilidades polifónicas do instrumento escreve ainda os dois Livros de Structures para dois pianos; exponenciando a paleta tímbrica e o virtuosismo técnico, vai mais longe e coroa a sua obra pianística com Sur incises (1996) para três pianos, três harpas e três percussões, obra representativa do género tipicamente bouleziano da música para “ensemble”: música de câmara, se pensarmos no limitado número de intervenientes, mas necessariamente dirigida por um maestro. Nesta categoria inscreve-se uma grande parte da sua obra: do já evocado Le Marteau sans Maître a Dérive II (1988), passando por Polyphonie X (1951), Éclat (1966), …explosante/fixe… (1991) e Domaines (1968), entre outras.
Se a música para ensemble nasce de um determinado contexto histórico no seio do qual a modernidade musical não tinha um acesso fácil a meios mais avultados, destinando-se inicialmente a um determinado tipo de sala, um determinado formato instrumental e até um determinado público, particularmente esclarecido; a música orquestral, essa, destina-se aos mais amplos meios e às mais importantes instituições da vida musical. Obras como Rituel in memoriam Bruno Maderna (1974) e Notations pour orchestre entram hoje no repertório das mais importantes orquestras mundiais; e uma criação como Répons, para seis solistas, ensemble instrumental e electrónica em tempo real, só é possível como fruto de um cruzamento fértil entre duas grandes instituições: um instituto dedicado à pesquisa tecnológica na sua aplicação à criação musical e um ensemble de grandes solistas dedicado à criação e interpretação da música contemporânea.
O IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música) e o Ensemble Intercontemporain correspondem, justamente, a estas instituições. A primeira, fundada por Boulez em 1969, a convite do presidente Georges Pompidou, é um veículo essencial no estudo e desenvolvimento dos meios tecnológicos aplicados à música, sendo hoje uma referência mundial e constituindo um modelo a partir do qual foram criados muitos outros institutos no plano internacional. O Ensemble Intercontemporain, fundado por Boulez em 1976, é uma orquestra de 31 solistas de elevadíssimo nível técnico individual, consagrada à criação e interpretação da música contemporânea.
Estas e outras instituições criadas ou impulsionadas por Boulez são a face mais visível do grande organizador dos meios musicais que foi Boulez. Foram também elas que, de certo modo, permitiram à contemporaneidade musical “institucionalizar-se”, tornar-se parte do mundo profissional e, assim, chegar ao grande público melómano que, hoje, numa grande sala de concerto de qualquer grande cidade europeia, pode ouvir, lado a lado, uma obra de referência do repertório orquestral e uma criação contemporânea – como sucede na programação da Philharmonie de Paris, um dos grandes projectos pelos quais Boulez pugnou incansavelmente, ao longo de anos, até o ver realizado já no final da sua vida.
Boulez o organizador deu um contributo essencial à música do seu tempo, do mesmo modo que o fez Boulez o maestro. Director Musical de grandes orquestras na Europa e nos Estados Unidos, maestro convidado das mais importantes formações mundiais, cabeça de cartaz das mais insignes editoras discográficas, Boulez levou sempre consigo a defesa intransigente da modernidade, não apenas no repertório que escolheu dirigir, mas também na forma de (re)interpretar a música do passado, em particular a grande tradição orquestral das últimas décadas do século XIX e das primeiras do século XX. Todo o seu olhar para o passado partia da sua óptica de compositor em permanente diálogo consigo mesmo, em permanente procura, em permanente utopia – “tentando ver por detrás de um espelho inexistente para surpreender a razão”, como escreverá na sua última e extraordinária carta a John Cage [3]. E não deixa de ser extraordinário como Boulez conseguiu conciliar na sua existência utopia e realismo, sonho e realização, obra artística e obra institucional.
Entre as duas, porventura, surge a obra de Boulez pensador, Boulez o teórico que, entre muitos escritos incontornáveis, nos deixa o último (até hoje) grande tratado de composição e poética musical, Penser la musique aujourd’hui, escrito no início dos anos sessenta, na cidade alemã de Darmstadt, em cujos cursos de verão se reuniam, na época, os jovens compositores da vanguarda musical, e onde Boulez, Stockhausen e Maderna, entre outros, surpreendiam com as suas imparáveis pesquisas na reorganização da linguagem, com os seus permanentes avanços técnicos, com as suas novas e surpreendentes criações.
“Um belo dia você morre (…) e passa a fazer parte da história”. Até sempre, Pierre!»
[1] – Boulez, Pierre: Par volonté et par hasard – Entretiens avec Célestin Deliège, Seuil, coleção Tel Quel, Paris, 1975, pág. 7.
[2] – Boulez, Pierre: Incidences actuelles de Berg (1948), in Relevés d’apprenti, Seuil, coleção Tel Quel, Paris, 1966, pág. 237.
[3] – Boulez, Pierre e Cage, John, Correspondance, Documents réunis, présentés et annotés par Jean-Jacques Nattiez, Christian Bourgois, coleção Musique / Passé / Présent, Paris, 1990, pág. 247.