A Antena 2 apresenta, no dia em que se assinala o Centenário do músico argentino Astor Piazzolla, um programa especial da autoria de Daniel Schvetz.
11 Março | 21h00
Especial | Astor Piazzolla | 100 anos
Um programa de Daniel Schvetz
Para ouvir, clicar aqui.
Rebelde, enfant terrible, e uma longa lista de epítetos e qualificativos, quando chegada a hora de intentar um mapa da personalidade dum singular artista, compositor e bandoneonista; referimo-nos a Astor Piazzolla.
Contestatário da tradição, carregou com a urgência, com o imperativo de alterar o rumo, de modificar, de se constituir em ponto de inflexão, de se manifestar de modo absolutamente pessoal (aliás, o objetivo de todo o criador, seja qual for a área).
É bem sabido que o universo do tango “nos” e “dos” anos 40 – para nos situarmos na era áurea das grandes orquestras, cantores, estilo e estética tangueiros -, é, logicamente, coeso e coerente, por características e virtudes várias.
Desde que Piazzolla abandona a orquestra de Aníbal Troilo em 1944, começa a caminhada das suas diversas propostas, sempre baseadas em ensembles entre o Quinteto e o Noneto, projetos através dos quais procurou refletir os seus ideais, em particular o que chamou, sempre, de “Nuevo Tango”, a coexistir com uma vasta obra sinfónica, mais de 50 músicas para cinema, vários concertos ou duplos concertos, regra geral, com o Bandoneón como um dos solistas.
Mesmo já consagradíssimo no mundo inteiro, o seu último projeto, entre 1989 e 1990 chamou-se “New tango Sextet”, como se houvesse, ainda, dúvidas ou hesitações sobre as suas intenções e metas no que à linguagem se refere.
Assim como o Jazz tem vários pontos de inflexão, do Ragtime ao Hot Jazz, Be Bop, Cool, free, Jazz-Rock, Fussion Jazz, etc., mundo que Piazzolla valorava e apreciava de forma sincera, sendo notáveis as suas parceiras com Gerry Mulligan e Gary Burton, o percurso de Piazzolla apresenta-se como um caminho relativamente solitário e pessoal, sentindo-se incompreendido, fundamentalmente, no seu país de origem, Argentina.
O recentemente falecido Chic Corea diz, a propósito de Astor Piazzolla:
The great Astor Piazzolla opened many musical doors for me and so many musicians who were touched by this music and the emotional intelligence of his compositions.
The great Astor Piazzolla opened many musical doors for me and so many musicians who were touched by this music and the emotional intelligence of his compositions.
[“O grande Astor Piazzolla abriu muitas portas musicais a mim e a tantos músicos que foram tocados por esta música e pela inteligência emocional das suas composições”]
Uma necessidade, talvez imperativo vindo do ADN, no sentido de integrar parte da galeria de grandes compositores do mundo erudito, junto a uma necessidade de “modernismo” que será traçada ao longo de toda a sua vida, habitou na alma de Astor Piazzolla, sem imaginar o impacto universal que o seu legado acabou por alcançar.
Stravinsky, Ravel e Bartók, são aqueles compositores citados reiteradamente por musicólogos, comentaristas, críticos, e o próprio Astor Piazzolla, em relação às influências e preferências musicais, as que teve maior grau de sintonia (que também mencionará a de Gershwin e Heitor Villa Lobos), sendo claro não sintonizar com as propostas e estética da Segunda Escola de Viena, muito menos com ideário dos Encontros de Darmstadt.
Não obstante, não iremos descobrir em nenhum daqueles, declarações afirmando que a tonalidade, as formas, a estética de finais do século XIX (para tomar uma referência evidente) estavam ultrapassadas ou esgotadas, apesar de haver claramente, no russo, no francês e no húngaro, numerosos procedimentos e recursos claramente pessoais e premonitórios, particularmente em Bartók.
Se houve compositor que exprimiu a necessidade e desejo de conceber uma maneira diferente de pensar e criar música, descolada do passado, quanto ao mundo tonal se refere, quanto aos critérios que representava o romantismo, quanto aos hábitos e rotinas do ouvinte, esse foi, sem dúvida, o vienense Arnold Shoenberg, que exprimiu, já instaladas as bases do primeiro abandono da tonalidade, o atonalismo, e depois o dodecafonismo, manifestando: “se não tivesse sido eu, teria sido outro”.
Assim como para Shoenberg o mundo tonal devia ser ultrapassado, para Piazzolla, o tango tradicional devia, claro está, ser ultrapassado.
Exprimiu-o reiteradamente, assumindo o que chamou de “Nuevo Tango” – como já mencionado -, que apareceu ligado a vários dos seus projetos, incluindo o derradeiro, e voltamos a ele, o “New Tango Sextet”.
Cabe mencionar que, embora tanto Ravel como Stravinsky e Bartok participaram como intérpretes de algumas das suas obras, como aconteceu com Mozart, Bach e tantos outros, grande parte da magia e envolvência que alcançou a arte de Astor Piazzolla, se deve à sua participação pessoal em performances no mundo inteiro, ou em registos discográficos e videográficos, o que deu uma impressão clara e valiosíssima à sua estética, estilo e, sobretudo, um contributo fundamental à componente interpretativa; quem nos dera poder ter tido contato com a obra de Bach por ele próprio, ou com as monumentais obras dum Beethoven, dum Mozart, dum Chopin, e tantos outros geniais criadores de épocas pretéritas, com as que teriam sido as suas valiosíssimas interpretações das próprias criações.O Especial Piazzolla é um percurso assimétrico, não necessariamente cronológico, da obra, vida e estética deste singular compositor e bandoneonista nascido em Mar del Plata, encostada ao Atlântico, em Março de 1921, o que de algum modo o marcou, tendo em conta um dos seus passatempos de eleição, a pesca de tubarões.
Daniel Schvetz