A Antena 2 assinala esta semana a passagem de 50 anos sobre a edição de The Köln Concert, o mítico álbum de Keith Jarrett que, nascido numa noite repleta de desaires, acabou por se transformar num dos maiores clássicos do jazz.
Na noite de 5ª feira (dia 27), pelas 21h00, recordamos uma ocasião em que o pianista belga Ivo de Greef tocou uma transcrição deste concerto de Keith Jarrett. Esse momento foi registado pela rádio pública portuguesa, num programa que incluiu ainda uma série de outras peças criadas em homenagem ao pianista norte-americano.
Na 6ª feira, Nuno Galopim reúne num estúdio cinco admiradores de Keith Jarrett. Filipe Raposo, Filipe Melo, João Paulo Esteves da Silva, Margarida Campelo e Mário Laginha partilham opiniões sobre este disco, memórias da sua descoberta e de uma eventual importância formadora, assim como recordações de concertos de Keith Jarrett a que assistiram.

A história invulgar de um disco de exceção
Aquela noite tinha tudo para dar errado. Keith Jarrett estava cansado, ou não tivesse passado horas na estrada, na Renault 4L do patrão da editora, estrada fora, 700 quilómetros, a caminho de Colónia. O músico, que tinha dado um concerto em Zurique dias antes, havia trocado o bilhete de avião e optado por ir de carro com Manfred Eicher, chegando a Colónia ao fim da tarde do dia do concerto nessa cidade alemã… Tinha ainda umas horas pela frente, uma vez que o concerto estava marcado para horas bem tardias. Os bilhetes indicavam as 23h30, horário que se devia ao facto de antes a mesma sala, a Oper der Stadt Köln (ou seja, um teatro de ópera) ter em cena uma produção mais próxima do seu DNA habitual… Uma ópera (em concreto a Lulu de Alban Berg). O certo é que os 1400 lugares da sala estavam esgotados e, mesmo em horário tardio, o desafio de ver ao vivo Keith Jarrett cativara uma pequena multidão.
Mas não foi o cansaço da viagem o maior senão daquela jornada. Ao chegar à sala o pianista reparou que o piano a si destinado não era o que havia pedido. Era outro. Mais pequeno. E, ao que parece, em condições longe das ideais… Valeu à plateia da sala (e a quem hoje conhece a gravação do concerto), a arte da persuasão da jovem promotora Vera Brandes, que conseguiu que o pianista, já então conhecido pelo perfeccionismo, e com mais vontade em cancelar do que em tocar naquelas condições, aceitasse subir ao palco. Na verdade, o facto de estar ali o equipamento montado pela editora para a captação daquele momento pode ter também pesado na decisão (e, quem sabe, na própria argumentação). Jantou a correr. O cocktail de eventos tinha tudo para o deixar longe de feliz e tranquilo. Mas o certo é que, com o relógio a meia hora da meia noite, um pianista cansado e com o piano errado lançou os dedos sobre as teclas… E o resto ficou na história.
Keith Jarrett, que nesses anos mais recentes, e após umas etapas ao lado de figuras como Art Blakey, Charles Lloyd ou Miles Davis, tinha deixado os teclados elétricos e regressado ao piano. Conhecera Manfred Eicher, que o convidara para entrar a bordo de uma nova aventura discográfica, a ECM, que o produtor alemão havia fundado em 1969 e na qual o pianista se estreara com Facing You um álbum de estúdio, tocado a solo, ao piano, em 1971. Desde então tinha passado por estúdios e palcos, ora em quartetos (um deles, americano, com Dewey Redman, Charlie Haden e Paul Motian, o outro, de alma europeia, ao lado de Jan Garbarek, Palle Danielsson e Jon Christensen), ora noutras parcerias, uma delas partilhada com Garbarek e uma orquestra. E iniciado, ao mesmo tempo, uma série de concertos a solo, ao piano, nos quais improvisar era o verbo a conjugar. E dessa série, um primeiro registo ao vivo havia já chegado a disco em finais de 1973, fixando num álbum triplo duas gravações, uma captada em Lausanne, a outra em Bremen, conquistando o título de melhor gravação de jazz do ano, em 1974, pela revista Downbeat.
Aquela noite, a 24 de janeiro de 1975, em Colónia, tinha, assim sendo, já uma expectativa semeada por todos estes feitos recentes. Mas o que ali aconteceu transcendeu tudo o que poderia esperar. As características daquele (inesperado) piano obrigaram-no a trabalhar sobretudo as escalas do meio e a usar as notas mais graves como peças de percussão. E assim nasceram duas peças improvisadas, uma delas depois transformada no lado A do disco 1, a segunda ocupando a face B do disco 1 e a A do disco 2. Houve ainda um encore, este não nascendo de uma improvisação, mas, antes, de um reencontro com Memories of Tomorrow, tema que Keith Jarrett havia já gravado com Gus Nemeth (contrabaixo) e Paul Motian (percussão). Esta peça mais curta, repensada agora para piano solo, surgiria em disco como Part II C na quarta face do duplo vinil.
O álbum, lançado em novembro de 1975 com o título The Köln Concert, vincou o estatuto de Keith Jarrett no panorama do jazz, é hoje reconhecido como um clássico maior do género e fez recordes no campeonato das vendas de discos. Música aqui gravada já foi usada no cinema (ouvimo-la, por exemplo, no Querido Diário de Nanni Moretti).
Nuno Galopim