A Casa Armanda Passos abriu pela primeira vez ao público, excecionalmente para assinalar os 80 anos de Armanda Passos, uma das mais notáveis pintoras portuguesas, com uma exposição de obras inéditas dos anos 80, provenientes de coleções públicas e privadas.
De 18 de maio, Dia Internacional do Museus, a 2 de junho, de 4ª feira a domingo, entre as 14h30 e as 19h30, o público pode visitar gratuitamente, esta mostra organizada pela filha da pintora, Fabíola Passos, na própria Casa onde viveu Armanda Passos e que foi projetada por Álvaro Siza Vieira.
80 anos Armanda Passos anos 80
Curadoria de Fabíola Passos
Depois da primeira grande exposição retrospetiva de Armanda Passos (1944-2021) realizada em Lisboa e organizada pela Fundação Champalimaud no ano seguinte à sua morte, onde foram mostradas oito dezenas de telas, desde os anos 70 e percorrendo mais de 30 anos de carreira, agora no Porto e celebrando o 80º aniversário de Armanda Passos são apresentadas 80 obras executadas na década de 80.
Na Casa Armanda Passos podem ver-se os emblemáticos carvões da Coleção RTP, da Coleção de Arte Contemporânea da Fundação Altice, da ‘Casa Armanda Passos’, bem como os óleos de grande presença das coleções de Maria Barroso-Mário Soares, de Mário Cláudio, de Miguel Cadilhe, da Fundação Millennium BCP, entre outros.
Autora de uma vasta obra, para além de serem agora reveladas telas nunca antes mostradas ao público, esta é também ocasião ímpar de visitar a casa projetada pelo notável arquiteto portuense e sentir o espaço privado que foi habitado por Armanda Passos e onde criou obra.
Com uma personalidade independente e reservada, distante de tendências artísticas e correntes estéticas, e numa época em que o panorama artístico português ainda era essencialmente masculino, a pintora criou uma figuração inconfundível, dando voz às mulheres no mundo das artes, e deixando um legado absolutamente original.
Testemunho da escritora Eduarda Chiote, amiga de Armanda Passos
Realização Fabíola Passos. Produção: Orlando Silva. Edição: Orlando Silva, Carlos Coelho Costa. Câmaras: Orlando Silva, Paulo Dias
Nota Biográfica
por Fabíola Passos
Armanda Passos. Um nome tão singular como a sua obra. Um nome que se transforma numa mensagem que vale só por si, que é o seu arquétipo: AR_MANDA_PAZ_SOS.
Ergueu-se fora do seu tempo e do seu espaço. Avançou pelo caminho que escolheu. Independente, alheada de tendências, longe dos holofotes. Mais do que uma pintora, foi uma criadora ímpar. Respeitou profundamente a Natureza. Apresenta-se a si mesma com uma simplicidade desarmante: “Sou planetária”.
Vivendo toda a família no Porto, foi vontade de sua avó materna que o parto se desse na quinta do Peso da Régua, por tradição familiar. Em 17 de Fevereiro de 1944, uma bebé atravessou a luz. O primeiro choro foi no Douro. Nativa de Aquário, signo do ar e do espaço, deram-lhe o nome de Armanda, aquela que “o ar demanda”. Após o nascimento regressou ao Porto, onde viveu até ao fim.
Armanda Passos nasceu numa família onde ninguém a incentivou a pintar, bem pelo contrário. “Não me lembro que alguma vez me tivessem dito que gostavam de me ver desenhar (…) Nunca ninguém ligou ao que eu fazia. Acho que a única coisa que eu gostava de fazer era desenhar”.
Este começo merece ser registado. Armanda Passos dizia sempre que tinha sido gerada durante a Segunda Guerra Mundial. A sua referência nunca foi o ano, nem o local do nascimento, mas o conflito da humanidade que alastrava no planeta.
“Penso que no meu trabalho sou informadora de mim própria, pois trago para fora o que existe em mim. Esse processo acompanha a minha vida, pois conforme vou vivendo, assim se vai refletindo nele. Sou compulsiva no que faço. Consigo pintar 7 a 8 horas seguidas em telas diferentes, com temas diferentes, mas também passo dias em que, se pintar 1 ou 2 horas, fico muito cansada.”
Licenciou-se em Artes Plásticas pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto, atual FBAUP, com a classificação máxima de 19 valores em Pintura, então regida por Júlio Resende. O seu trabalho já era autoral. Ainda como aluna foi convidada por Ângelo de Sousa para sua assistente e aceitou o convite.
Aos 50 anos uma jornalista perguntou-lhe, “Se não vivesse no Porto, onde é que gostaria de viver?“ Respondeu, “O Porto é o único sítio.”
Aos 60 anos perguntaram-lhe se gostava de viajar, “Adoro estar aqui neste canto, embora eu saiba que o Planeta tem coisas maravilhosas, algumas delas tive oportunidade de conhecer. Sei que me remeto cada vez mais a esses meus cantos. Não trocaria nenhuma viagem por nada disto. Mas há uma coisa que adorava fazer, embora saiba que à partida é impossível. Adorava voar eu própria pela Amazónia, sobre aquele verde, ver as cataratas e passar por sítios onde a natureza me cobrisse. Ficar ali debaixo a sentir simplesmente que não existia”.
No Porto a artista faz a Casa Armanda Passos, projetada por Álvaro Siza. O arquiteto escreveu: “Encontrei por fim alguém mais exigente do que eu. Alguém que procura pacientemente a perfeição.”
Na Casa também formou o Atelier – o lugar da sua energia criadora. Quantos gestos estarão ali? Há cavaletes espalhados. Há reservas de tinta. Há uma bata pendurada. As paletas continuam cobertas de cores à espera dos pincéis daquela mão que “vinha do ar”. É um triplo pé direito, onde existem figuras, seres matriciais, casulos, escafandros colossais. É uma viagem, como se de uma nave se tratasse. Esse é o lugar que guarda as partículas de Armanda Passos.
No pátio, há um banco de madeira, uma varanda com pombas à espera. Durante anos, neste espaço, a artista escutou o canto dos pássaros. Recebia um casal de gaivotas que sabia chamá-la e, depois de comer, agradecer-lhe alto e bom som. Traziam-lhe as crias. Confiavam na sua amiga humana. Ninguém da família apoiava. Mas Armanda Passos nunca desistiu dos pássaros. Ela era voadora.
Do lado poente, além das árvores por si escolhidas, há um prado que foi semeado pelas suas mãos. Um dia, ao entardecer, desligou o sistema da rega, abriu a água, da mesma maneira que abria o tubo de tinta e, com a mesma atenção com que pintava, deu de beber aos rebentos da terra. E foi tanta a união com a Natureza, que continuou a regar enquanto pôde e mesmo doente e curvada, assumiu a dignidade das árvores que morrem de pé.
Na primavera, aquele prado florescia branco e ninguém da família reparava. Mas a artista, que era ecologista, dizia, como quem falava para mais alguém, “as flores são pequenas, não as calquem”.
A ‘Casa Armanda Passos’ foi inaugurada em 2006. Perguntaram-lhe, “Esta casa, tão diferente de todas as outras que lhe são vizinhas, simboliza o quê?” Respondeu, “Se me pergunta se representa o que desejava fazer neste planeta, dir-lhe-ei que não. O que eu quero é pintar. Ela [Fabíola] tem a função para a casa. Eu não estarei cá, mas na casa vão crescer os guerreiros da nossa espécie.”
Armanda Passos assinava entrando na própria criação, sentido-se unida com esses seres. A transmissão da energia para a tela ficava ali patente. Torna-se mais intensa com o passar do tempo. Esse é o mistério.
Entre as distinções recebidas em vida, destaca-se o Prémio do Ministério da Cultura recebido pelo Primeiro Ministro em Lisboa (1984) e a atribuição da Comenda da Ordem de Mérito, no Dia de Portugal, no CCB (2012). Representou Portugal em bienais internacionais. Participou na EXPO 98, em exposições coletivas e individuais, destacando-se as realizadas pela Universidade do Porto, que foram as únicas dedicadas a um artista nas comemorações do Centenário da UP (2011).
Está presente em relevantes instituições, o Museu Nacional de Arte Contemporânea, Fundação Champalimaud, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Oriente, Fundação Millennium BCP, ex-Museu Coleção Berardo, Museu de Serralves, Museu do Douro, Reitoria da Universidade do Porto, Assembleia da República, Tribunal de Contas, Supremo Tribunal de Justiça, Assembleia da República, Procuradoria Geral da República, Sala do Conselho de Estado da Presidência da República.
A sua obra suscitou textos de escritores e historiadores, como José Saramago, Eduardo Prado Coelho, Vasco Graça Moura, António Alçada Baptista, David Mourão-Ferreira, Mário Cláudio, Lídia Jorge, Mia Couto, Raquel Henriques da Silva, Luís de Moura Sobral ou José-Augusto França.
A Casa Armanda Passos destina-se a salvaguardar a coleção que a artista determinou guardar ao longo da sua vida e a permitir estudar o seu legado de modo transversal. A seu tempo, torná-lo acessível.
“Não quero ser vedeta”, dizia, “fujo muito do meio artístico, não quero ser conhecida. Só quero que me conheçam no meu apagado processo de querer estar na vida”. Armanda Passos queria pintar. Não queria estar com pessoas. Era reservada. Preservou o seu caminho e deixou em Portugal um legado absolutamente inconfundível.
A exposição revela obras inéditas dos anos 80 – mas é tão-só uma seleção. São os emblemáticos carvões da Coleção RTP, da Coleção de Arte Contemporânea da Fundação Altice, da Coleção ‘Casa Armanda Passos’, os óleos da Coleção Maria Barroso-Mário Soares, de Mário Cláudio, de Miguel Cadilhe, da Fundação Millennium BCP, entre outros recentemente encontrado o paradeiro.
Termino com isto. Desafiando-se a si própria, apesar de contra-indicado, desenhou até ao fim, como vital necessidade. O traço foi o seu tubo de oxigénio. Desenhou como quem respira do ar. Não podia ter tido outro nome.
Armanda Passos morreu na ‘Casa Armanda Passos’ a 19 outubro de 2021. Aguentou uma prolongada doença oncológica num limiar de sobrevivência. Tinha 77 anos. Foi uma pessoa estóica. Uma Mulher de paz. A arte, a sua resiliência.
A primeira retrospetiva da sua obra não aconteceu em vida. Foi em Lisboa, na Fundação Champalimaud. “A primeira retrospetiva de Armanda Passos confirma a força da sua obra e o que perdemos em não a termos visto até hoje assim.” (Cristina Margarto, Expresso). A título póstumo, foi condecorada com a Ordem de Santiago de Espada, no Palácio de Belém (2022).
Armanda Passos depurou o seu trabalho de títulos, rótulos e datas, as legendas do tempo, deixando à sua pintura o papel de falar. O nível de encriptação foi elevado. A artista ia dizendo uma coisa ou outra, mas seria a última pessoa a dizer o que aquilo era. Bastava-lhe que a sua obra tivesse sido criada no planeta.
Fabíola Passos
Testemunho de Gonçalo Teixeira da Mota, amigo de Armanda Passos
Fotos Jorge Carmona / Antena 2