Estreia
Opéra-Comique de Paris em 1846
Antecedentes
Fausto Através dos Tempos
Em 1587, aparecia em Frankfurt um pequeno livro. Contava a "verdadeira história" do Dr. Faustus, um estudioso que vendeu a sua alma ao diabo. O diabo prometeu servir Faustus, responder a todas as suas perguntas e nunca mentir. Como contrapartida, Faustus renunciaria a Deus e cederia o seu corpo e alma ao diabo passados 24 anos. Faustus desfrutou de vastas riquezas e prazeres proibidos, viajou pelo universo e aprendeu os segredos do cosmos. No final, o diabo recebeu o que lhe era devido. A horrenda morte do Dr. Faustus serviu de aviso aos seus alunos para que estes não seguissem o seu exemplo.
Desde então, Fausto tem fascinado a imaginação ocidental. Esta história foi contada e recontada – primeiro em teatros de marionetes e depois em tragédias, poemas, ballets, óperas, sinfonias, romances e filmes. E com a mudança do mundo, também a história de Fausto mudou. Christopher Marlowe, na sua tragédia Dr. Faustus (1604), narra os perigos da soberba. O arrogante Dr. Faustus aprende tudo e decide que somente o conhecimento da magia negra tem valor. Apesar de temer a danação, a sua cobiça, luxúria e cobardia não permitem que ele se arrependa até o momento em que é arrastado aos infernos. Séculos mais tarde, o libreto cubista de Gertrude Stein, Dr. Faustus Lights the Lights (1938), fundia o mito faustiano à invenção da lâmpada. O romance Dr. Faustus (1947), de Thomas Mann, situa a maldita jornada de um compositor em busca da glória artística, durante uma Alemanha imersa na escuridão do nazismo. Hoje, o tema de Fausto ainda inspira musicais, filmes e até videojogos.
O Fausto de Goethe
A versão mais famosa da lenda de Fausto é a de Johann Wolfgang von Goethe. Seus poemas dramáticos Fausto, Primeira Parte (1808) e Fausto, Segunda Parte (1832) contam a história de um homem que deseja transcender a sua humanidade. O Fausto de Goethe é uma alma torturada pelos estudos e carente de experiências. O seu acordo com o diabo é diferente. Mefistófeles só ganhará a alma de Fausto se conseguir conjurar um momento tão belo que Fausto o deseje para sempre.
Em Fausto, Primeira Parte, Fausto apaixona-se pela jovem donzela Margarida. Com a ajuda de Mefistófeles, ele sedu-la. Mas a relação gera somente a discórdia. Margarida mata acidentalmente a sua mãe e o irmão dela morre na defesa da sua honra. A própria Margarida enlouquece depois de afogar o seu bebé ilegítimo e acaba na prisão. Fausto quer salvá-la, mas ela nega-se a segui-lo. Em vez disso, ela reza por clemência e uma voz celestial anuncia que foi perdoada. Em Fausto, Segunda Parte, publicado 24 anos mais tarde, é Fausto que é perdoado por Deus dado que a sua busca foi sempre pelo sublime.
Berlioz Descobre Fausto
Em 1828, Hector Berlioz, com apenas 25 anos, era já a quintessência do artista torturado: intensamente idealista, terrivelmente sensível, perpetuamente apaixonado e incrivelmente ambicioso. Ele sonhava com música onde as regras formais dessem lugar às expressões passionais. Ele queria deslumbrar audiências com o elemento surpresa e sobrecarregá-los de emoções.
Quando Berlioz leu a versão francesa de Fausto, Primeira Parte, traduzida por Gérard de Nerval, apaixonou-se imediatamente pelas histórias fantásticas, as vastas paisagens, e personagens multicores. Ele identificou-se com Fausto, que anseia transcender, rompe com as normas, e é torturado pelo amor. Naquele mesmo ano, Berlioz começou a compor música para algumas partes do poema.
Berlioz trabalhou com secções do Fausto escritas em verso: A Balada do Rei de Tule, de Margarida; a Canção do Rato, de Brander, e o Hino Pascal, entre outros. As oito cenas que ele compôs não contavam uma história contínua – na verdade, o próprio Fausto nunca apareceu nestas cenas. Berlioz simplesmente queria conjurar a atmosfera da obra de Goethe.
Berlioz publicou suas Huit Scènes de Faust (Oito Cenas de Fausto) em 1829. Esta foi assim a sua primeira obra publicada, o seu Opus 1. Mas pouco tempo depois, a apresentação de uma das cenas decepcionou o compositor. Irado, Berlioz anunciou que as suas cenas eram primitivas e queimou todas as cópias publicadas que encontrou da obra.
Uma Obra Escrita na Rua
Nos anos que se seguiram, Berlioz tornou-se num hábil compositor de dramas. Ele fez esbater as fronteiras entre as formas musicais, combinando ópera com sinfonias, sinfonias com monólogos, e oratórios com ópera. O seu Roméo et Juliette (1839), por exemplo, é uma "sinfonia dramática com coro, solos vocais e prólogo dramático em recitativo". Berlioz experimentou também a ópera tradicional, compondo a brilhante, porém subestimada, Benvenuto Cellini (1836 a 1838).
Em 1845, Berlioz estava pronto para trazer Fausto, Primeira Parte à vida novamente. No princípio, ele pensou em incluir as suas Oito Cenas numa grande ópera. Ele pediu ao libretista Almire Gandonnière para escrever o texto, contudo acabou por ter que rever a maioria do trabalho do seu parceiro, escrevendo a maior parte do libreto. Enquanto escrevia a música ia-se apercebendo do quão pequenos eram os palcos da ópera tradicional para a sua visão do Fausto. Berlioz decidiu assim caracterizar a sua obra como légende dramatique: uma lenda dramática para apresentação em concerto.
A música inovadora de Berlioz era frequentemente incompreendida ou ignorada em Paris, e ele passou muito tempo fazer digressões pela Europa. Grande parte de La Damnation de Faust foi escrita durante a sua digressão europeia de 1845 a 1846. Berlioz escrevia em qualquer lugar onde a inspiração chegasse: foi numa hospedaria na Baviera, que escreveu "Le Viel Hiver", e numa rua escura em Peste, que ele esboçou "Ronde des Paysans" à luz de uma vitrina. Berlioz compôs em Viena, Rouen, Praga, Breslau e, claro, na sua cidade natal, Paris. "Eu não procurava as ideias; eu deixava que elas chegassem até mim e elas apresentavam-se nas formas mais imprevistas…", relembrou o compositor.
A Marcha Húngara
A "Marcha Húngara" foi escrita para satisfazer as audiências na parte húngara da sua digressão. Naquela altura, a Hungria vivia um certo fervor nacionalista, anti-imperialista e como consequência anti-áustria. Os húngaros desejavam formar seu próprio estado e isso refletiu-se na própria cultura – redescobriam a sua lingua, a sua história e os seus heróis nacionais. Um destes heróis foi Férénc Rákóczi, um príncipe magiar que liderou a rebelião contra os austríacos de 1703 a 1711. Ele tornou-se símbolo da luta pela independência. De tal maneira que uma canção folclórica carregava seu nome: a Marcha de Rákóczi, tornada famosa por János Bihari, grande violinista e compositor cigano.
Em 1846, numa festa em Viena, um músico amador disse a Berlioz que ele teria que tocar música húngara se quisesse conquistar os corações húngaros. Ele entregou a Berlioz uma partitura da Marcha de Rákóczi. Berlioz fez um arranjo da marcha para orquestra e regeu-a sobre o título de "Marche Húngara" num concerto em Peste. A multidão enlouqueceu. Berlioz escreveria mais tarde nas suas memórias: "a sala começou a fermentar com um ruído indescritível… gritos e pancadas encheram o salão; a emoção concentrada de todas aquelas almas excitadas explodiu com acentos que me deram um arrepio de terror, eu sentia os meus cabelos levantarem…" Berlioz teve que interromper a apresentação: "o temporal da orquestra não podia competir com aquela erupção vulcânica que nada podia parar".
Quando Berlioz regressou a Viena, o músico amador implorou ao compositor que não revelasse a sua identidade: a Marcha tinha criado um tal tumulto que era perigoso ser relacionado com o evento. Dois anos mais tarde, em 1848, iniciaria a Revolução Magiar, que levou o país a uma sangrenta (e eventualmente falida) guerra de independência.
A Marcha Húngara foi tão bem sucedida que o compositor decidiu incluí-la na Danação de Fausto. Ele situou a primeira parte do drama na Hungria, substituindo assim o gabinete de Fausto, local onde Goethe situou sua primeira cena.
A Danação de Fausto, a Salvação de Margarida
Berlioz também condensou radicalmente a trama de Fausto, Primeira Parte, eliminado as personagens de Siebel, irmão de Margarida, a vizinha Martha, a cena da catedral, o episódio da noite em Walpurgis, entre outros. A filosofia de Goethe tampouco encontrou espaço no libreto: Berlioz, o eterno apaixonado, estava muito mais interessado no romance entre Fausto e Margarida.
Como outros artistas antes dele, Berlioz mudou o significado da lenda de Fausto: O Fausto de Berlioz não é um grande estudioso; ele vive em busca, não de reflexões profundas, mas de grandes emoções; Fausto é torturado pelo tédio; ele não tem nenhum interesse na magia negra; Mefistófeles chega sem ser convidado; não existe nenhum acordo com o diabo, só um truque – Mefistófeles apresenta Fausto a Margarida com a intenção de levá-lo à danação; o amor é uma cilada armada pelo diabo; e quando Margarida vai para a prisão, Mefistófeles exige de Fausto a sua alma para que a de Margarida possa ser salva.
Este novo final foi a grande inovação de Berlioz. No poema goethiano, Deus sacrifica Margarida. No drama de Berlioz, o próprio Fausto é o redentor de Margarida. Ele sacrifica-se, descendo até o inferno para que ela possa chegar ao paraíso.
Uma recepção tépida
Berlioz esperava que A Danação fosse um sucesso. Infelizmente, as duas primeiras apresentações na Opéra-Comique em 1846 tiveram pequenas audiências. O que deveria ter sido um grande evento musical, passou completamente desapercebido pelo público parisiense. "Nada na minha carreira artística me feriu mais do que aquela inesperada indiferença", escreveu mais tarde Berlioz.
Afortunadamente, a obra foi depois reconhecida como uma obra-prima. No século XX, A Danação de Fausto ajudou a restabelecer Berlioz como um dos mais importantes, e desmerecidamente negligenciado, compositores da história.
Um Teatro da Imaginação
Berlioz caracterizou A Danação como uma lenda dramática, não uma ópera. Ele era um exímio pintor de telas através da sua música e, nesta obra, ele usou efeitos musicais, não cénicos, para narrar sua história. A música é quase cinemática: Berlioz faz cortes e altera gradualmente as dinâmicas nas entrecenas, metamorfoseando, na velocidade da imaginação, Hungria na Alemanha, ruas tumultuadas num gabinete isolado, chamas do inferno em glórias do paraíso.
Foram já muitos os encenadores que tentaram montar A Danação de Fausto, mas esta é uma obra difícil de ser bem produzida. O coro é usado extensivamente, os entreactos são rápidos, e a música está desenhada para estimular a imaginação dos ouvintes. Não há preocupações com entradas e saídas de cena.
A produção do Met, realizada por Robert Lepage, resolve este problema combinando a apresentação ao vivo com vídeo-projecções. A produção chega a Nova York via Festival Saito Kinen, em Matsumoto, Japão, e Opera Nacional de Paris – Ópera da Bastilha.
Resumo
Parte I
Uma alvorada primaveril nos campos da Hungria. Fausto contempla a renovação da natureza. Ao escutar os camponeses, que cantam e dançam, ele dá-se conta de que nunca poderá sentir tal felicidade simplória. Um exército marcha no horizonte. Fausto não compreende porque é que os soldados se entusiasmam tanto com a glória e a fama.
Parte II
Deprimido, Fausto regressa ao seu gabinete. Nem mesmo a busca pela sabedoria o consegue inspirar. Cansado da vida, ele está a ponto a suicidar-se quando um hino pascal e as badaladas dos sinos da igreja o fazem recordar a sua juventude, quando ele ainda se apoiava na religião. Eis que surge Mefistófeles, que ironiza sobre a aparente reconversão de Fausto. Ele oferece-se para levá-lo numa viagem, e promete-lhe a sabedoria e a saciedade de todos seus desejos. Fausto aceita.
Mefistófeles e Fausto chegam ao porão de Auerbach, em Leipzig, onde Brander, um estudante, canta uma canção sobre um rato que perdeu a sua boa vida numa cozinha, com uma dose de veneno. Os presentes retumbam num irónico "Amém" e Mefistófeles prossegue com uma outra canção sobre uma pulga que traz seus parentes para infestar toda uma corte real (Canção da Pulga). Repugnado com tamanha vulgaridade, Fausto exige ser levado para outro lugar.
Num prado, nas margens do rio Elba, Mefistófeles dá-lhe a visão de uma bela mulher chamada Margarida. Fausto apaixona-se pela visão e chama pelo nome de Margarida. Mefistófeles promete levá-lo até ela. Juntos, com um grupo de estudantes e soldados, entram na cidade onde vive Margarida.
Parte III
Fausto e Mefistófeles escondem-se no quarto de Margarida. O doutor acredita que ela é o seu ideal de mulher, pura e inocente. Entra Margarida. Ela canta uma balada sobre o Rei de Tule, que se manteve tristemente fiel ao seu amor perdido. Mefistófeles conjura os espíritos para encantarem e enganarem Margarida e canta uma sarcástica serenata na frente de sua janela, vaticinando a perda da sua inocência. No momento em que os espíritos se desvanecem, entra Fausto. Margarida admite ter sonhado com ele, bem como ele com ela, e eles declaram seu amor mútuo. Neste momento, entra Mefistófeles, denunciando que a reputação de Margarida está em perigo: os vizinhos sabem da presença de um homem no quarto de Margarida e chamaram a mãe dela ao local. Depois de um apressado adeus, Fausto e Mefistófeles saem.
Parte IV
Fausto abandonou Margarida, no entanto a jovem ainda espera por ele ("D’amour l’ardente flamme"). Ela ouve os soldados e estudantes à distância e recorda-se da primeira noite em que Fausto apareceu na sua casa. Mas desta vez, ele não está entre a multidão.
Numa paisagem cheia de florestas e cavernas, Fausto pede à natureza que cure o cansaço mundano ("Nature immense, impénétrable et fière"). Mefistófeles surge e diz que Margarida está presa. Ela matou acidentalmente a sua mãe, dando à senhora uma dose excessiva de uma poção para dormir, e será enforcada no dia seguinte. Fausto entra em pânico, mas Mefistófeles diz que Fausto pode salvá-la – se Fausto concordar em ceder sua alma. Sem pensar noutra coisa que não seja salvar a Margarida, Fausto concorda. Os dois saem a cavalgar num par de corcéis negros.
Pensando estar a salvar Margarida, Fausto fica estarrecido ao ver aparições demoníacas. A paisagem torna-se cada vez mais grotesca e terrível e Fausto finalmente compreende que Mefistófeles está a levá-lo directamente para o inferno. Demónios e almas amaldiçoadas saúdam Mefistófeles numa linguagem misteriosa e infernal e dão as boas vindas a Fausto.
Epílogo
O inferno cai em silêncio depois da chegada de Fausto. Um coro, narra e canta sobre o "mistério do terror". Enquanto isso, Margarida é salva e é acolhida no paraíso.