Libreto Francesco Maria Piave
Estreia Teatro La Fenice, Veneza em 12 de março de 1857
AntecedentesA Transição De Drama À Ópera
A ópera Simão Boccanegra que conhecemos foi criada num processo que levou quase 20 anos. Em 1856, Giuseppe Verdi recebeu uma comissão para escrever uma ópera para o Teatro La Fenice, em Veneza. La Traviata, a ultima ópera do compositor estreada neste teatro foi um sucesso e o libretista, Francesco Maria Piave, foi contratado novamente na esperança de um novo êxito. O drama Simão Boccanegra, de Garcia Gutierrez, foi escolhido como tema e Verdi começou a imediatamente a compor a sua música. Contudo, por causa de um enredo confuso e uma linguagem musical pouco corrente, a primeira versão da ópera foi um fiasco, pelo que vinte anos depois Verdi iria rever toda a ópera com a ajuda de Arrigo Boito.
As razões para este regresso de Verdi a Simão Boccanegra, em 1880, são incertas, mas a maioria dos historiadores concordam que o compositor desejava testar Arrigo Boito antes de colaborar com ele em Otelo. As árias maléficas e ariscas acrescentadas ao papel de Paolo em Simão Boccanegra prenunciam o assustador Credo de Iago; a nova e magnificente cena da Câmara dos Conselheiros e sua orquestração ousada abrem caminho para a natureza grandiosa do terceiro acto de Otelo. O tenor e o barítono que estrearam os papéis de Gabriele e Paolo na nova versão de Simão Boccanegra em 1881, também encarnaram, respectivamente, Otelo e Iago em 1887. Além de tornar Paolo mais manipulador, Verdi reformulou o protagonista, Simão Boccanegra, numa quase total revisão da partitura. Boito conseguiu fazer da personagem de Boccanegra o que Piave nunca conseguiu – criar um Doge de Génova afável, carinhoso e, ao mesmo tempo, conflituoso. A cena na Câmara dos Conselheiros no final do Primeiro Acto é claramente a mais notável adição de Boito no desenvolvimento da personagem de Simão. Ao fazer com que o Doge de Génova cite o humanista Petrarca, pedindo paz entre os povos, Simão incorpora o heroísmo de um mártir e acaba por assemelhar-se a tal. A cena da Câmara dos Conselheiros torna-se o centro da obra revisitada, oferecendo uma ligação emocional entre Boccanegra e a audiência, tornando a morte do protagonista no terceiro acto muito mais pungente.
A Temática Do Risorgimento Em Simão Boccanegra
Simão Boccanegra alude aos temas e emoções de uma nação atribulada que procura uma resolução para um conflito interno em favor do bem comum. Para além disso, a ópera mostra não apenas um, mas dois conflitos políticos que envolvem os genoveses: a guerra civil de patrícios contra plebeus, e hostilidades internacionais contra Veneza. Contudo, a ópera não trata da divisão de poder, mas sim do poder da união. Apesar de Simão Boccanegra se passar na Génova do século XIV, os seus temas tratam directamente da unificação italiana – um assunto bem actual para as audiências de meados de 1800. O âmbito da peça é a de uma Génova dividida, mas as audiências italianas certamente perceberam na disputa entre plebeus e patrícios o reflexo das dificuldades que ameaçavam o sucesso da unificação italiana.
A interpretação verdiana das cartas do humanista italiano Francesco Petrarca para o primeiro Doge de Génova foi providencial na revisão da ópera. Numa carta ao seu editor, Verdi escreveu sobre uma nova cena:
Lembro-me bem de duas cartas maravilhosas de Petrarca, uma escrita para o Doge Boccanegra e outra ao Doge de Veneza, dizendo-lhes que estavam a ponto de cometer fratricídio, sendo ambos filhos de uma mesma mãe, a Itália. Como era maravilhoso o sentimento pela pátria italiana naqueles tempos.
As cartas de Petrarca são mencionadas na cena da Câmara dos Conselheiros, e é o que inspira Simão a fazer as pazes com Veneza, a contragosto de alguns conselheiros. A menção à filosofia do humanista, revela um Doge de Génova inteligente e sensível, além de aludir ao nacionalismo italiano com base num contexto histórico. Em verdade, o primeiro Doge de Génova nunca recebeu e muito menos seguiu tal conselho. Foi durante a ausência de Boccanegra do trono ducal que a carta de Petrarca foi recebida. Verdi e Boito preferiram ignorar o fato em razão do efeito dramático alcançado quando Simão lê a carta de Petrarca na famosa conclusão do Primeiro Acto.
A Itália estava à beira da guerra na ocasião de estreia de Simão Boccanegra em 1857. Em 1860, o famoso Garibaldi e seu grupo de camisas-vermelhas anexaram a Sicília, e em 1861, proclamou-se o reino italiano. A ópera, contudo, não gerou o mesmo fervor patriótico de outros sucessos de Verdi durante este período extremamente politizado. O clima de Simão Boccanegra não é o de um grito de guerra, mas sim de uma celebração de vitória. Verdi mostra-nos como líderes bons e justos podem se sacrificar por causas nobres e justas. Ele relembra a sua plateia, através de uma música de forte carácter nacionalista e de personagens amadurecidas, que a Itália possui não só uma tradição da qual se deve orgulhar, mas também de uma história trágica, porém inspiradora.
O Verdadeiro Simão Boccanegra
Génova tornou-se uma cidade-estado independente no início do século XII, o que levou a conflitos com Veneza e Pisa. Depois de uma série de vitórias marítimas contra as cidades-estado rivais nos finais do século XIII, Génova alcançou o apogeu do seu poderio internacional. Apesar do seu sucesso no mar, as contendas entre famílias nobres, e entre estas e as de condição mais humilde, eram frequentes. Os tumultos eram constantes, mas mesmo assim os patrícios – a facção aristocrata – conseguiu manter o controlo do governo até metade do século XIV. O governo patrício era dirigido por um comité de cônsules eleitos por uma assembleia popular. Plebeus, membros do partido popular, não tinham direito a obter tais posições políticas. Assim, em 1339, uma revolta do Partido dos Plebeus resultou numa completa mudança do poder na cidade. Os Plebeus criaram um novo chefe de estado conhecido como o Doge, elegendo através de voto popular interno o primeiro e lendário governador, Simão Boccanegra, para o cargo. Na ópera de Verdi, o primeiro Doge esforçou-se por unir Plebeus e Patrícios sob um mesmo comando; contudo, o verdadeiro Boccanegra não foi nem tão idealista nem tão bem sucedido. Apesar de conseguir proteger o litoral das forças venezianas, o seu papel foi principalmente de prevenção do caos e o partido nobre nunca aceitou este Plebeu como líder do governo genovês.
Apesar de, em teoria, o Doge ter garantida uma nomeação vitalícia, a permanente rivalidade entre plebeus e patrícios impediram que a maioria dos líderes italianos conseguisse servir por um largo período. O próprio Boccanegra foi obrigado a exilar-se cinco anos depois de se ter tornado Doge, apesar de ter governado por mais sete anos após um curto hiato de tempo. A ópera de Verdi ignora este intervalo na administração plebeia e exagera a eficácia de Boccanegra como líder. Verdi celebra a personagem de Boccanegra como um símbolo de diplomacia, justiça e força. Na realidade, quando Boccanegra tomou posse, um de seus primeiros decretos foi banir e excluir as famílias patrícias de qualquer forma de participação no governo de Génova. Como relata o libreto, Simão Boccanegra morreu envenenado pelos seus inimigos, tendo sido sucedido por Gabriel Adorno como o novo Doge. Mas ao contrário do que sugere a famosa ópera, a liderança de Adorno foi fraca e ineficaz, sendo na realidade oriundo de uma família de plebeus e não de nobres.
Simão Boccanegra de Garcia Gutierrez
Simão Boccanegra baseia-se no drama de Antonio Garcia Gutierrez, cujas personagens principais são figuras históricas do século XIV. Vale a pena ressalvar, contudo, que Gutierrez tomou de uma certa liberdade poética ao moldar o protagonista, Simão Boccanegra. Na peça, tal como no libreto que Verdi musicou, Simão Boccanegra era um corsário antes de se tornar no primeiro Doge de Génova. A palavra ‘corsário’ – um pirata que recebe uma incumbência de um governo – é originária do termo medieval em latim cursa, que significa incursão, expedição ou invasão. Na realidade, o primeiro Doge de Génova não tinha quaisquer antecedentes de pirata, mas os de um respeitado cidadão de Génova e membro de uma proeminente família plebeia. Ele foi envenenado pelos seus inimigos, mas não por um cortesão como na ópera de Verdi. Foi na realidade o irmão de Simão, Edígio Boccanegra, quem teve uma carreira de marinheiro, tendo conquistado várias vitórias marítimas para sua cidade-estado. Gutierrez combinou os dois irmãos ao formar a personagem de Simão Boccanegra para a ópera.
As famílias nobres dos Grimaldi e dos Fieschi faziam parte de um sistema político semi-feudal que ia controlando o povo. À medida que os comuns reuniam riquezas e ampliavam o seu poderio através do comércio e das expedições marítimas, conquistavam também poder e influência suficientes para fazer cair os nobres eleitos e eleger o primeiro líder civil do partido popular: o primeiro Doge de Génova, Simão Boccanegra. O novo governo aboliu explicitamente a elegibilidade dos nobres para a posição de Doge.
O partido dos comuns, pela sua origem latina, é conhecido historicamente como o dos Plebeus, enquanto que o partido da nobreza é conhecido como o dos Patrícios. Na ópera de Verdi, os Patrícios também se envolvem no levante dos Guelfos com o intuito de recuperar o poder aristocrático sobre a república. Apesar de Verdi combinar os dois conflitos na sua ópera, Guelfos e Gibelinos referem-se a distinções imperiais, enquanto que Plebeus e Patrícios estão mais relacionados com um inerente sistema de castas. Durante a contínua luta medieval pelo poder entre papas e imperadores, os Guelfos auxiliavam o papado que por outro lado apoiava os interesses Guelfos, a classe rica e mercantilista. Já os Gibelinos apoiavam o imperador que cuidava das terras e dos benefícios agrícolas. A partir do século XII, na Itália, as divisões entre estas facções tornaram-se mais claras e o partido com maior influência numa cidade determinaria a direcção política daquele local. Na altura de Simão Boccanegra essas linhas políticas já não eram tão claras e a cidade entrou num ciclo de revoltas sangrentas, de patrícios contra plebeus, famílias contra famílias, e irmão contra irmão. O levante guelfo planeado por Jacopo Fiesco e Gabriele Adorno em Simão é um bom exemplo do que acontecia na Itália neste período. Uma revolução assim poderia mudar radicalmente a postura política do governo.
Apesar do libreto retratar apenas duas facções políticas, Plebeus e Patrícios, várias personagens remetem para os insurgentes Guelfos. O libreto de Boito equipara a causa dos Patrícios com a dos Guelfos, havendo apenas uma personagem em Simão Boccanegra que não se encaixa claramente em nenhuma das categorias políticas: Amélia Grimaldi representa tanto a tragédia da desunião como a força da unificação quando ambas facções se unem. Amélia é filha de Simão (um Plebeu) e Maria (uma Patrícia); ela foi criada pela família patrícia dos Grimaldi e ama Gabriele. Ao tomar conhecimento que Simão Boccanegra é seu pai, alia-se a ele. Na ópera, Amélia Grimaldi torna-se um símbolo da união entre Patrícios e Plebeus. É o amor de Simão Boccanegra e Gabriele Adorno por Amélia que os incentiva a fazerem sacrifícios e concessões mútuas. Quando Gabriele descobre que Simão é pai de Amélia, ele oferece-se para lutar em prol do partido de Simão. No último acto, como que num último desejo, Simão Boccanegra oferece a coroa ducal a Gabriele Adorno numa simbólica transição de poder entre facções outrora inimigas.
ResumoPRÓLOGO
Numa praça em Génova no século XIV, Paolo e Pietro, líderes do partido popular (plebeu), conspiram para derrubar a aristocracia (os patrícios). Eles nomeiam o ex-pirata Simão Boccanegra como candidato para o cargo de Doge, magistrado supremo da república. Boccanegra aceita, na esperança de que o novo cargo o ajude a casar-se com Maria, filha de Fiesco, um patrício. Maria foi presa pelo seu pai por ter dado à luz uma filha ilegítima de Boccanegra. Entretanto os plebeus juram apoio a Boccanegra.
Entra Fiesco, a chorar a morte de Maria. Boccanegra, sem suspeitar que a sua amada está morta, regressa e tenta fazer as pazes com o patrício, mas Fiesco diz que primeiro quer ver a sua neta. Boccanegra conta que ela desapareceu e Fiesco sai fazendo Boccanegra entrar no palácio, dando com o corpo de Maria. É com profunda tristeza que Boccanegra abandona o palácio para ver a multidão proclamá-lo como o novo Doge de Génova.
Passam-se vinte e cinco anos entre o Prólogo e o Primeiro Acto. Durante este período, Boccanegra mandou exilar os seus inimigos políticos e confiscou todos os seus bens. Fiesco, agora exilado, vive fora de Génova no palácio dos Grimaldi, sob o nome de "Andrea". Ele é o guardião de uma certa Amélia Grimaldi. A filha do conde Grimaldi morreu num convento nas proximidades de Pisa, mas, no mesmo dia, uma órfã foi aí encontrada tendo sido criada no lugar da criança morta. Ela recebeu o nome de Amélia Grimaldi, ficando assim garantida uma herdeira, o que impede que as propriedades dos Grimaldi sejam confiscas – todos os exilados políticos que ficassem sem herdeiros veriam os seus bens confiscados pela república. Amélia é, na realidade, Maria Boccanegra, filha de Simão com Maria e neta de Fiesco. Nem Fiesco nem Boccanegra conhecem a identidade secreta de Amélia. Entretanto, Amélia tem um amante que é o patrício Gabriele Adorno. Gabriele e Fiesco, lembr-mo-nos que Fiesco se faz passar por um tal de Andrea, conspiram para derrubar o Doge.
I acto
Primeira Cena
Amélia espera por Gabriele no jardim à beira-mar do Palácio dos Grimaldi. Quando ele chega, Amélia adverte-o sobre os perigos que implicam uma conspiração contra o Doge e para o convencer a ter mais cuidado, fala-lhe do seu amor por ele. Amélia diz a Gabriele que o Doge quer que ela se case com Paolo, um cortesão do partido dos plebeus. Então, Gabriele resolve apressar-se e vai pedir a bênção de Andrea, guardião de Amélia. Andrea conta-lhe que Amélia não é verdadeiramente uma Grimaldi, mas uma órfã de antecedentes desconhecidos. Mesmo assim Gabriele está decidido a casar com ela, contudo é preciso destronar o Doge.
Gabriele e Andrea saem justamente quando uma fanfarra anuncia a chegada de Boccanegra. O Doge vem avisar Amélia que perdoou os seus irmãos adoptivos por uma sublevação. Comovida com generosidade do Doge, ela admite o seu amor por Gabriele e descreve o seu passado solitário. Boccanegra, ouve o relato e decide mostrar-lhe um medalhão com a imagem da sua falecida Maria, acabando por descobrir que Amélia tem um medalhão idêntico. Boccanegra dá-se conta que Amélia é Maria, a sua filha desaparecida, e eles abraçam-se. Quando o Doge diz a Paolo que esqueça o seu sonho de se casar com Amélia, Paolo, que apesar de ser um seguidor de Boccanegra não tem quaisquer escrúpulos, decide raptá-la com a ajuda de Pietro.
Segunda Cena
Na Câmara dos Conselheiros, no Palácio do Doge, durante um debate onde se discute uma possível trégua com Veneza, ouvem-se gritos coléricos vindos da rua. A Câmara é invadida por Gabriele e por uma verdadeira multidão que o persegue. O jovem matou um homem que estava a tentar raptar Amélia e acusa Boccanegra de ter planeado o sequestro. Quando Gabriele tenta esfaquear o Doge, Amélia intervém pedindo pela vida do seu amado que, a esta altura, começa a suspeitar de que ela é amante de Boccanegra. Amélia decide então contar o que realmente se passou ao Conselho, e insinua a cumplicidade de Paolo na tentativa de sequestro. Boccanegra pede paz às facções contrárias ("Plebe! Patrizi!) e ordena que Paolo amaldiçoe o homem que está por detrás do sequestro. Apavorado, Paolo é obrigado a obedecer, amaldiçoando-se a si próprio. Gabriele é preso.
Segundo Acto
À noite, nos aposentos do Doge, Paolo envia Pietro para libertar Gabriele e Andrea da prisão. Lembrando-se da maldição, ele coloca veneno dentro do jarro de água de Boccanegra. Quando os dois prisioneiros chegam, Paolo tenta convencê-los a assassinar o Doge, instigando Gabriele ao insinuar um relacionamento entre o Doge e Amélia. Gabriele fica furioso de ciúmes até que Amélia entra; antes de poder explicar-se, eles ouvem Boccanegra a aproximar-se. Gabriele esconde-se e Amélia pede ao Doge que perdoe o seu amante, caso contrário, ela morrerá no patíbulo juntamente com ele. Boccanegra concorda, mas na condição de que Gabriele abandone a conspiração. Quando finalmente fica a sós, o governante, já esgotado, bebe da água envenenada. Ele adormece. Gabriele, que não ouviu nada da conversa anterior, entra e está pronto para esfaquear Boccanegra. Surge então Amélia que impede o assassinato. O Doge desperta e resolve revelar a Gabriele que ele é o verdadeiro pai de Amélia. Enquanto Amélia reza pela sua mãe, Boccanegra perdoa o arrependido Gabriele. Volta-se a ouvir um tumulto. Está um grupo rebelde lá fora, liderado por Andrea. Então, Gabriele diz a Boccanegra que os vai dominar, nem que para isso tenha que morrer em defesa do Doge. Como recompensa, o Boccanegra oferece-lhe a mão de Amélia.
Terceiro Acto
A revolta foi contida e Génova celebra a vitória de Boccanegra. Andrea, libertado, encontra Paolo a caminho da execução e este admite ter envenenado o Doge. Um arauto anuncia que as celebrações devem parar em honra dos heróis caídos. Boccanegra entra cambaleante, mortalmente enfermo. Andrea (que é na relaidade Fiesco) resolve também revelar a sua verdadeira identidade e fica a saber pelo Doge que Amélia é sua neta. O velho chora ao descobrir a verdade tão tarde e conta a Boccanegra sobre o veneno do vingativo Paolo. A morrer, o Doge abençoa o casal e nomeia Gabriele como seu sucessor. Fiesco, abatido, anuncia ao povo a morte de Boccanegra.