LibretoFelice Romani
EstreiaTeatro della Canobbiana, Milão em 1832
AntecedentesElir de Amor ou Vendedor de Sonhos…
O compositor Gaetano Donizetti e o libertista Felice Romani, comissionados por Alessandro Lanari, empresário do Teatro della Canobbiana, para a temporada de 1832, utilizaram a opéra-comique de Auber, com libreto da autoria de Eugène Scribe, Le Philtre, estreada em Paris, a 15 de Junho de 1831, como modelo na criação de O Elixir de Amor. O enredo original francês, simples, baseava-se em personagens e situações análogos a arquétipos típicos do teatro cómico universal. Donizetti e Romani descodificaram a estrutura e reinventaram uma lógica e um discurso adaptados às tipologias e códigos teatrais italianos. A ópera era apresentada ao público milanês no dia 12 de Maio e, apesar do entusiasmo contido do próprio compositor, obtém assinalável êxito, tornando-se numa das óperas de Donizetti mais vezes apresentada durante a sua vida e numa das primeiras a nunca ter saído de cena.
Numa época em que começava a difundir-se e a imperar o gosto romântico pelos dramas trágicos, a longa tradição do género cómico, que atingira o auge com as obras de Rossini, denunciava sinais de crise. A mudança no gosto e no estilo da linguagem melodramática apelava à construção de personagens com uma forte humanidade e profundidade psicológica, incompatíveis com a superficialidade dos carácteres e dos mecanismos típicos de uma ópera de enganos como era a tradicional opera buffa italiana. Com O Elixir de Amor, Donizetti e Romani conseguem resolver o conflito entre os dois géneros e acabam por reelaborar o estilo cómico combinando-o com o elemento sentimental. A inclusão de grande e autentica expressividade emotiva constitui uma verdadeira inovação estilística aos paradigmas da ópera cómica italiana. Estes momentos, ausentes no libreto de Scribe, conferem aos seus personagens uma penetrante faceta humana.
Donizetti era um compositor versátil, conhecido por uma invulgar fluidez criativa, e conhecedor da tradição musical e literária da comédia italiana. Ao longo da sua carreira compôs mais de 70 óperas e, para além de compor, era um excelente basso buffo, um instrumentista que adorava interpretar música de câmara e um experiente maestro. O facto de a produção cómica ocupar um papel secundário no cômputo geral da sua ópera, apenas reflete, provavelmente, a conjuntura do mundo operístico do momento, que, em resposta ao gosto dominante, atribuía maior respeito e remuneração financeira aos compositores de ópera séria. No entanto, para além de O Elixir de Amor, nela constam títulos como La fille du Régiment (1840) e Don Pasquale (1843), óperas que ainda hoje continuam a impôr-se como referências do género cómico. O desafio de Lanari surge num momento em que Donizetti, apesar do reconhecimento obtido com Anna Bolena (1830), enfrentava uma recepção fria a Ugo, Conte di Parigi, ópera estreada a 13 de Março de 1832, no Teatro alla Scala, dois meses antes da estreia de O Elixir de Amor. O relato de Emília Branca, mulher de Romani, atribui o escasso prazo de duas semanas para a elaboração da ópera. Embora se saiba hoje, através da consulta da correspondência do compositor para o pai, que tal não corresponde inteiramente à verdade: o trabalho acabou por decorrer com uma celeridade inusual sem, contudo, comprometer a coerência, a eficácia e a qualidade literária e musical do produto final.
A elegante tradução de Felice Romani e a inserção de alguns versos originais ou pequenas e subtis alterações de sentido da fonte francesa, contribuíram para realçar o carácter particular de O Elixir de Amor e providenciaram a Donizetti uma base literária inspiradora. A história de amor conjuga-se com um relato pleno de alegria e cor da vida no campo. Os aldeões falam, respondem, interagem com os personagens principais.
A acção situa-se numa época e lugar indeterminados, sabendo-se apenas que os acontecimentos narrados se passam numa aldeia durante o período das colheitas.
Os protagonistas são: Nemorino, um jovem ingénuo e modesto, perdidamente apaixonado por Adina, a bela e rica proprietária rural que todos admiram e cobiçam, incluindo Belcore, um vaidoso sargento do exercito, de passagem pelo local. Dulcamara é um pretenso doutor que deambula de terra em terra a vender o seu elixir milagroso. Entre os camponeses e trabalhadores rurais destaca-se a vivacidade de Gianetta, aldeã em idade casadoira.
Primeiro Acto
Num cenário campestre, os trabalhadores preparam-se para saborear as delicias de um merecido descanso. Entre eles está Nemorino. Enquanto ele exprime o seu deslumbramento por Adina e se angustia com as suas limitações, a bela e rica jovem diverte-se com a leitura de um livro e desperta a curiosidade de quem a rodeia com as suas gargalhas. Instada por todos, Adina acaba por contar as aventuras de Tristão e Isolda, troçando do miraculoso elixir que permitira a Tristão conquistar o amor da rainha Isolda.
Um tema marcial anuncia a chegada de um destacamento militar chefiado por Belcore. A beleza de Adina não passa despercebida ao garboso sargento. Confiante nos seus atributos e no poder da sedução exercido pela sua máscula figura, Belcore galanteia a jovem e acaba por pedi-la em casamento. Adina não se rende à exibição do presunçoso sargento e, astuciosamente, pede tempo para reflectir, no entanto demonstra a sua magnanimidade ao permitir que os militares repousem na sua herdade.
Enquanto todos se afastam, Nemorino decide aproximar-se e declarar-se. Indiferente aos suspiros do jovem, Adina aconselha-o a esquecê-la e a partir para a cidade a fim de acompanhar o tio, gravemente doente, assegurando assim a herança que lhe pertence. Perante a insistência de Nemorino, Adina confessa que a sua natureza é volátil e livre como a de uma brisa caprichosa. A rejeição de Adina não demove Nemorino que compara o seu amor a um rio que inevitavelmente corre para o mar.
A agitação instala-se na aldeia com a chegada de um novo personagem. Rodeado de grande pompa, o ‘doutor’ Dulcamara apresenta um maravilhoso produto capaz de curar qualquer maleita, ao alcance de todos por pouco dinheiro. Para Nemorino, Dulcamara representa a salvação. Num gesto desesperado, pede ao presumível doutro que lhe venda o famoso elixir de Tristão. Arguto, Dulcamara apercebe-se e aproveita-se da ingenuidade de Nemorino. Sem hesitar, vende-lhe o filtro mágico, que não passa de uma garrafa de vinho de Bodéus, e previne-o que o efeito se faz sentir passadas 24 horas, tempo suficiente para se escapara sem ser perseguido.
Emocionado e grato pela posse do precioso elixir, Nemorino começa a beber a poção e não tarda a sentir os efeitos do vinho exibindo uma exuberante alegria que surpreende Adina. A mudança de atitude do rapaz ofende e provoca a vingança de Adina. Belcore aparece e esta reage com entusiasmo, aceitando casar-se num prazo de seis dias. Convicto do poder do elixir, a tudo assiste com indiferença, mas a segurança desaparece quando, em resposta ao anuncio da ordem de transferência dos militares, Adina aceita antecipar o casamento para esse mesmo dia. Angustiado, Nemorino roga-lhe que adie a boda por um só dia, mas esta não cede. A alegria de todos, perante a perspectiva dos festejos, contrasta com a consternação sentida por Nemorino, transformado no alvo da troça geral.
Segundo Acto
A aldeia está em festa com o feliz acontecimento. Dulcamara, honroso convidado, decide desafiar Adina a acompanhá-lo numa barcarola. A interpretação impressiona os presentes e a sua mestria é efusivamente elogiada.
Com o anuncio da chagada do notário, todos se retiram para assistir ao contrato nupcial, excepto o ‘Doutor’ que aproveita para continuar a desfrutar do banquete. Aproxima-se Nemorino, suplicante, a pedir ajuda para o desespero em que se encontra. Como está de partida, Dulcamara aceita vender-lhe nova dose de elixir, concedendo-lhe um quarto de hora para arranjar a quantia necessária.
Chega Belcore, confuso com a decisão de Adina adiar a assinatura do contrato para mais tarde e cruza-se com Nemorino. A aflição do jovem não passa despercebida ao sargento e é este quem resolve os dilemas a Nemorino ao convencê-lo a alistar-se no exercito. A satisfação é mutua, belcore porque conseguiu mobilizar o rival e nemorino porque conseguiu dinheiro para entregar a Dulcamara.
Entretanto, Gianetta irrompe em cena com um segredo que deixa as raparigas em alvoroço: Nemorino acabara de herdar uma fortuna convertendo-se assim no melhor partido da aldeia. O sucesso junto das raparigas não levanta duvidas a Nemorino, plenamente convencido do poder da poção mágica, porém, deixa Dulcamara e Adina perplexos. Orgulhoso da sua intervenção, Dulcamara descreve a Adina as virtudes do Elixir da rainha Isolda e o sacrifício de Nemorino para o comprar. A caprichosa Adina toma consciência da nobreza e sinceridade dos sentimentos de Nemorino e deixa transparecer a paixão que começa a invadi-la, mas não se deixa convencer a adquirir um frasco de tão milagrosa poção, pois acredita no poder de seu olhar. Entretanto Nemorino consegue libertar-se do assédio das jovens e suspira pelo seu verdadeiro amor, em cujos olhos pensa ter vislumbrado uma furtiva lágrima. Adina aproxima-se e entrega a Nemorino o papel que o resgata do serviço militar. A contenção de Adina fá-lo pensar que não é correspondido e, decepcionado por não receber a desejada declaração amorosa, recusa a oferta: antes morrer soldado que viver sem ser amado. O gesto de Nemorino revela a paixão que ainda o consome. Os dois jovens confessam finalmente o amor que sentem. Belcore surpreende os dois amantes, mas, recomposto do espanto inicial, decide partir para novas aventuras. Dulcamara informa Nemorino sobre a morte do tio e sobre a existência da herança.
Aclamado por todos como herói, num clima de jubilo generalizado, o ‘Doutor’ Dulcamara prepara-se para abandonar a região, não sem antes voltar a propagandear os méritos do irresistível elixir que concede saúde, beleza, alegria, fortuna e ouro.
O arquétipo do charlatão, o Dottore Dulcamara, com o seu exuberante e contagiante discurso tem o poder de encantar e granjear a simpatia geral. O seu elixir, um excelente vinho, acaba por funcionar como um real libertador de paixões e, ao fazer emergir ops sentimentos mais íntimos dos personagens, abre-lhes caminho para a felicidade.
Sempre existiu e sempre existirá um mercado para os vendedores de sonhos, pois todos, sem excepção, gostaríamos de acreditar que existe uma poção capaz de assegurar a vitória sobre as dificuldades e frustrações impostas pela vida. Hoje, como ontem, o publico continua a deleitar-se com as peripécias desta ópera que, pelo menos durante a temporada de 1836, se apresentou em Portugal aos portuenses, no palco do Real Teatro de S. João, pela empresa de José Lombardi e dirigida pelo maestro João António Ribas. Celebre-se então o poder inebriante do néctar dos deuses, como bonomia e prazenteira disposição.