Gravação da Antena 2 / RTP
na Sala do Trono do Palácio Nacional de Queluz,
Cantus | Eva Braga Simões, Joana Castro, Raquel Mendes
Altus | Gabriela Braga Simões, Maria Bustorff
Tenor | Carlos Meireles, Luís Toscano
Bassus | Pedro Silva, Nuno Mendes, Tomé Azevedo
Programa
Domenico Scarlatti (1685-1757) – Kyrie, da missa Quatuor Vocum
João Lourenço Rebelo (1610-1661/5) – Dixit Dominus
João Rodrigues Esteves (c1701-1752) – Laudate pueri
Filipe de Magalhães (c1571-1652) – Magnificat
Fernando de Almeida (c1600-1660) / Manuel Soares (m1756) – Lamentationes
Josquin des Prez (c1450-1521) – Stabat Mater Dolorosa
Pedro Vaz Rego (1673-1736) – Credidi propter
João Rodrigues Esteves (c1701-1752) – Miserere mei Deus
Notas ao Programa | Miserere mei Deus
Um dos aspectos mais ricos e fascinantes da música sacra na Europa das primeiras décadas do século XVIII decorre da simultaneidade, à primeira vista paradoxal, entre a continuidade e a renovação dos repertórios. Com efeito, pela natureza eminentemente pragmática e funcional de um repertório vivo, subjacente às mais variadas cerimónias litúrgicas que exigia, em especial nos principais centros, uma dedicação e um cuidado intensos e continuados, era inevitável que os seus compositores e mestres de capela fossem agentes dos desenvolvimentos musicais do seu tempo – frequentemente com uma exploração incipiente nos géneros mais profanos – introduzindo-os e adequando-os de modo gradual às necessidades litúrgicas a suprir.
Tradicionalmente, a Musicologia Histórica tendia a enfatizar estes fenómenos de inovação de repertórios, quase transmitindo a ideia – mesmo que inadvertidamente – de que as novidades substituiriam, de modo quase imediato e inapelável, as obras dos períodos anteriores. No entanto, as décadas mais recentes têm testemunhado uma profunda revisão daquela ideia, decorrente de estudos cada vez mais sistemáticos e consistentes das próprias fontes musicais setecentistas dos grandes centros litúrgico-musicais do continente europeu. Destes estudos, resulta claro por meio de incontáveis exemplos que, a par da inovação acima aludida, o repertório sacro vivo consistia, em grande medida, no aproveitamento, adaptação e/ou inspiração de obras compostas várias décadas (ou mesmo séculos) antes. Perfilando-se como uma das principais nações no panorama geopolítico da centúria de 1700, a música sacra em Portugal comungava, com naturalidade, daquelas vicissitudes.
O presente programa põe em relevo distintos matizes da confluência das aparentemente antagónicas dinâmicas na prática performativa do nosso país, por meio de um alinhamento integralmente presente em fontes manuscritas setecentistas. Desde logo, numa evocação do provável 450º aniversário natalício de Filipe de Magalhães (c1571-1652), apresenta-se como obra axial o seu Magnificat do 1º tom (versos ímpares), numa transcrição do Prof. Doutor José Abreu. Ocupa os primeiros fólios de Cantica Beatissimae Virginis – um dos dois volumes que Magalhães publicou em Lisboa no ano de 1636 –, mas é possível encontrá-lo também, em cópia manuscrita datada de 1769, no Arquivo da Sé Patriarcal.
Da autoria de Manuel Mendes (c1547-1605) – provável mestre de Magalhães, a quem legou o espólio musical para uma desejável publicação póstuma que nunca se concretizou – é apresentada a antífona Asperges me a partir de um manuscrito datado de 1736. Neste manuscrito, explicita-se que, às cinco vozes originais da autoria de Mendes, foram adicionadas três por Manuel Soares (m1756), renomado músico que ocupou o cargo de organista da Capela Real.
Uma distinta intervenção de Soares a uma obra pré-existente surge noutro manuscrito exarado no mesmo ano de 1736: desta feita, trata-se da adição de secções completas às magistrais Lamentationes, da autoria de Fernando de Almeida (c1600-1660), por forma a assegurar todo o texto em polifonia. Eloquentemente, a forma como Soares emulou o estilo de Mendes e Almeida tem tornado infrutíferas as tentativas de distinguir o material original do acrescentado.
Contemporâneo de Almeida, João Lourenço Rebelo (1610-1661/5) é um dos mais reconhecidos músicos portugueses nascidos na centúria de 1600, com uma obra marcante para as gerações seguintes, plasmada numa sucessão de cópias manuscritas até finais do século XVIII. Dixit Dominus abre um ciclo de salmos para Vésperas de Rebelo que integra um volume dedicado a esta Hora litúrgica preservado em Coimbra. Este mesmo volume inclui o salmo Credidi propter, do músico campomaiorense Pedro Vaz Rego (1673-1736). Apesar da sua vinculação ao stile antico, é possível discernir nesta obra de Vaz Rego uma linguagem harmónica mais arrojada, dificilmente engendrável antes do século XVIII. Também ancorado no stile antico, é hoje interpretado o surpreendente Kyrie da Missa quatuor vocum de Domenico Scarlatti (1685-1757), músico com uma indelével e influente passagem por Portugal na década de 1720, enquanto mestre de capela ao serviço de D. João V.
Enquanto Scarlatti deixava Roma e chegava a Portugal, João Rodrigues Esteves (c1701-1752) fazia o percurso inverso, enviado como bolseiro a expensas do monarca português para estudar com Ottavio Pitoni (1657-1743). Data desta época o salmo Laudate pueri – aqui interpretado a partir de uma transcrição do Prof. Doutor Eugénio Amorim – em cujo manuscrito, datado de 1722, surge a expressão “Feito em Roma pello metodo dos psalmos de Rabello”, numa alusão a João Lourenço Rebelo. Do mesmo autor, Miserere mei Deus é uma pungente versão a oito vozes do salmo penitencial, neste caso explicitamente destinado à Hora litúrgica das Matinas de Sábado Santo. A completar o programa do recital de hoje, comemora-se mais uma efeméride: o 5º centenário do desaparecimento de Josquin des Prez (c1450-1521). Com esse propósito, é interpretada Stabat Mater, uma das suas obras mais emblemáticas, objecto de uma tradição de cópias manuscritas por toda a Europa até ao século XIX.
Luís Toscano
Cupertinos | Nascido no seio da Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, em 2009, este grupo vocal dedica-se quase em exclusivo à música portuguesa dos séculos XVI e XVII, alicerçada num núcleo de compositores de renome mundial como Duarte Lobo (c.1565-1646), Manuel Cardoso (1566-1650), Filipe de Magalhães (c.1571-1652) ou Pedro de Cristo (c.1550-1618).
Com uma média anual superior a quinze concertos, os Cupertinos apresentaram já cerca de duas centenas e meia de obras, incluindo mais de cem inéditos. Numa abordagem performativa sem precedentes, vários destes inéditos têm sido transcritos a partir das fontes originais pelos próprios elementos do grupo, sob a supervisão do seu diretor musical, Luís Toscano, e do Prof. Doutor José Abreu (Universidade de Coimbra e Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto).
Além do Festival Internacional de Polifonia Portuguesa, do qual são anfitriões, os Cupertinos têm participado em conceituados festivais de música, nomeadamente II e VI Ciclo de Requiem de Coimbra, I e V Festival Internacional de Música Religiosa de Guimarães, IX Ciclo de Música Sacra da Igreja Românica de São Pedro de Rates, XXII e XXV Cistermúsica – Festival de Música de Alcobaça, Ciclo Espaços da Polifonia, XVIII Jornadas Polifónicas Internacionales Ciudad de Ávila, West Coast Early Music Festival, Bolzano Festival Bozen e Temporada Música em São Roque. Após a estreia no Reino Unido, em fevereiro de 2020, na série de concertos ‘Choral at Cadogan’, futuros compromissos incluem a apresentação no Wigmore Hall, no Festival Tage Alter Musik em Regensburg – e na Estónia no Haapsalu Early Music Festival.
Crescentemente reputados como verdadeiros embaixadores da Polifonia Portuguesa, os Cupertinos viram este epíteto reforçado com o lançamento dos seus trabalhos discográficos dedicados a Manuel Cardoso e Duarte Lobo. Editados pela prestigiada etiqueta Hyperion, estes CDs são presença assídua nas rádios clássicas por toda a Europa e têm sido aclamados na imprensa da especialidade (BBC Music Magazine, Gramophone, Choir & Organ, Chorzeit). Os Cupertinos conquistaram o primeiro galardão com a inclusão na Bestenliste da Deutscher Schallplattenkritik e foram distinguidos nos Gramophone Classical Music Awards 2019, vencendo na categoria de Música Antiga. Foram finalistas na Edição de 2020 dos PLAY – Prémios da Música Portuguesa e vencedores na categoria Melhor Álbum Música Clássica/Erudita na edição de 2021.
Luís Toscano | Após ter iniciado a sua atividade como coralista no Coro dos Pequenos Cantores de Coimbra, prosseguiu os seus estudos musicais no Conservatório de Música de Coimbra, obtendo, em simultâneo, a licenciatura em Economia na Universidade de Coimbra. Subsequentemente, foi bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia num projeto de investigação, edição e interpretação de música portuguesa dos séculos XVI e XVII e concluiu o Mestrado em Música na Universidade de Aveiro. Atualmente, é aluno de Doutoramento em Estudos Artísticos | Estudos Musicais e colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra.
É diretor musical e membro do Grupo vocal Cupertinos, com o qual recebeu o prestigioso Gramophone Music Award 2019, na categoria Música Antiga. É também cofundador do grupo La Farsa e membro do Grupo de Fado Aeminium, da Capela Gregoriana Psalterium, do Coro Casa da Música e do Ars Nova Copenhagen. Colabora regularmente com outros reputados grupos europeus, tais como The Brabant Ensemble (Reino Unido), Theatre of Voices (Reino Unido), Ludovice Ensemble (Portugal), Contrapunctus (Reino Unido), Música Ficta (Reino Unido), Vocal Ensemble (Portugal) e Los Afectos Diversos (Espanha).